domingo, 30 de dezembro de 2007

Solidão

Queria escrever um texto bonito aqui hoje. Mas a solidão estrangula minhas mais sinceras tentivas de sorriso e sabota meus melhores pensamentos. Queria escrever um texto interessante. Mas tudo que vem à tona é um desinteresse por tudo. A solidão é tão autêntica e tão esmerada no seu trabalho que, quando ela está, nenhum outro sentimento se aproxima. Por isso, não estou triste. É você só dentro de você mesmo. É uma impressionante sensação de estar cheio quando tudo que você sente é um vazio. É uma busca interior por respostas em que não se encontra nada, nem as perguntas. Há um tempo, descobri, através das fontes mais confiáveis (muitas músicas e poemas), que o oposto do amor não é o ódio. É a solidão. Qualquer solitário sabe que a solidão vive exclusivamente dentro dele e independe de número ou da proximidade das pessoas que o rodeiam. Solidão não tem remédio. O máximo que se pode fazer é tomar paliativos. Por isso, se não tiver um amor, tenha sempre um gato à mão. O gato, aliás, é o único bicho capaz de identificar a solidão (note como ele vem para junto de você só nessas ocasiões... e quando está com fome, claro). Apesar da desgraça, a solidão tem, pelo menos, uma vantagem: por si só se basta. E, às vezes, é realmente sua única companhia. Como disse um certo gajo, "A inteira, negra e fria solidão / Está comigo".

O Corpo

De tanto ser, deixou-se o corpo a esperar
Que o chorassem, que o pensassem...
Não temos tempo para pensar!
De tanto ser, acostumou-se a pertencer
a quem o afagava, a quem o lembrava...
Quanto nos dão para lembrar?

Mal-acostumado corpo, que queres tu ainda aqui?
Que juntemos os pedaços de tuas mãos pútridas?
Que cheiremos as alcovas de teu rosto fétido?
Que mergulhemos no raso de teus olhos pálidos?
Foste reles momento em vida, não és tempo de se relembrar

Por isso vai-te o quanto antes, pois nada há de parar
Como incessantemente respiraste em vida, havemos de continuar
a fazer tudo o que não pensamos
a pensar tudo o que não fazemos

Pois, o tempo em que a pupila se dilata
é o instante que levamos para esquecer
Que no momento que nascemos
Começamos a morrer

Conforto

Conforto como corre o braço pelo lado
do corpo ao lado. macio.
conforto como o ouvido escutando o silêncio
do ombro que diz: "aqui"
Sentado onde deveria estar, e nunca ter saído.
Seu lugar de origem. seu fim.
O laço que só um corpo no outro sabe
sabedoria que por dentro sopra
quente e doce. lã no pescoço, beijo no olho, supiro aliviado.
Sol da manhã, dá manha. massagem.
café. sorriso no olho do outro,
do outro lado, abraço sem toque,
silêncio confortável como uma explicação
ausente e desnecessária.
a imperceptível totalidade do não-falar que é só
e só se basta, como um ouvido num ombro
um consolo sem motivo-tristeza, um abraço.

Dia Cheio

Vinha de beber. Mas era pouco. Foi só pra recordar todos aqueles momentos inesquecíveis, já que saudade não tinha nem um suspiro. Pensara em morrer certa vez. Um banheiro branco, close na gota de sangue, uma carta de três palavras. Ia pensar. Tinha que saber se morrer era somente. [[Moça!]] Tinha que passar na casa de papai. Já fui? E o negócio da máquina, já faz uma semana. Depois encontrar as meninas no bar... Ai, não tenho nenhuma roupa pra usar! O endereço... acho que era... Rua Alaíde Conejo. Vou dar isso mesmo. Ela nem apareceu no meu. [[Moça!]] Que cansaço dessa inevitabilidade de ser. Era isso: queria alforria de si. Era governante absolutista de uma autocracia totalmente democrática. Acho que mamãe é o Congresso. Ou a Câmara. [[Estamos perdendo ela!]] E Felipe? Acho que dessa vez vai. Nunca estive com pessoa assim. Nem assim com pessoa. Gostava de contar-lhe os cílios indeterminavelmente apinhados. Coisinha trabalhosa. Podia ficar horas naquela tarefinha irritante e maravilhosa. Piscou. Começar tudo de novo. [[Abra os olhos!]] Deixa ver. Tem que entrar aqui. Vi na cara dela que ela não gostou do presente. Suas relações exteriores estavam muito ruins. Quase todas fundadas em acordos unilaterais. Tinha que romper relações diplomáticas com toda a Europa Oriental, leia-se: Fatinha e a família dela. [[Olhos abertos! Ouviu!?]] Achava que amava: negócio de cantar baixinho lembrando do outro, silêncio aconchegante olhando do olho, crítica sem julgamento... Só faltava a vida. Vida que não seja mononucléica. Nada de fagocitose de desaforos. [[Pulso!]] Como vou dizer isso? O conflito por si só já é a derrota. A fervura das forças crescendo e a perspectiva do obstáculo eram-lhe suficientes para vaporizar-se de viver. [[Segurem ela! Calma!]] Preferia um bisturi, cromado. Luz branca. Já sei as palavras. "Eu não vivi." Perfeito. Mentira. [[Agüente!]] Queria que isso dissesse tudo. [[Estou aqui, moça!]] Mas é o não-dito, o mal-dito, que eu não queria dizer. Odeio dirigir à noite. Saco. Sinal fechado. [[Responda!]] "Não, moço, tenho trocado não." [[Agüente firme!]]--istola calibre .22. Enferrujada. [[Pupilas dilatadas]] Anderson falou que isso é uma "garruchinha". Ele só queria ser o--. Um som escuro, quase rígido de tão novo. Celular. 1-9-2. [[Não tem mais pulso]] Não sabia que morrer era tão só. [[Foi corajosa!]] Não. Só tinha um celular à mão. Não sabia que morrer era tão-só.

Terça

Terça

Marte e morte era meu terço:
Um terço vida, um terço cinza, um terço aperto
No torso anseio noturno o dia inteiro.

Mas de amar-te teci certo temor à morte
E de escalar-te fiz calar-me nos teus olhos
Amortecido o peito torto ao ver descanso.

Do escarlate deus-rubi não tenho traço
E do verde-encanto dos teus olhos fiz tercetos:
Um terço riso, um terço verde, um terço acerto

[Publicado no caderno Saber+, do Pernambuco, suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, nº 27, abril/2008.]

Nostalgia


"The man is only half himself, the other half is his expression".
(O homem é só metade, a outra metade é sua expressão).
(R.W. Emerson, In: The Poet. Self-Reliance. acho que é isso...)


Nostalgia

Quero o passado, empoeirado.
Quero uma caixa, lisa, no fundo de uma gaveta.
Quero cartões-postais, fotos amareladas
antigos amores, fotos três por quatro

Quero que o tempo ataque o presente
Quero recortes de jornal, souvenirs de duas décadas
Quero boletins de escola, quero um sorriso involuntário
Quero palavras de outros tempos - outras grafias

Queria cartas superficiais, selos de 1989
Queria fotos de mim mesmo num álbum de uma viagem qualquer
Queria monólogos desesperados numa folha de caderno vagabundo
Queria lembrar como era ser eu ali.

Queria esconder do presente minha simpatia pelo passado
Meu medo do futuro - como daquele filho rebelde
que no final se mostra um adolescente que é
que vira presente e me faz rir quando passado.