sábado, 29 de março de 2008

Crônica de uma Quinta-feira em Casa Amarela

Era Casa Amarela à noite, nas redondezas de uma quinta-feira. Estávamos, o Mago e eu, sedentos e cansados atrás de um refrigério para o corpo. Encontramos abrigo nas barbas do Morro da Conceição, num ambiente estritamente familiar. Pedimos uma impensada cerveja como autômatos e começamos a discutir com a seriedade e a dedicação costumeiras os rumos profissionais e pessoais da vida alheia. A noite já ia perdendo o ritmo e se espreguiçando rumo a uma sexta-feira de batente. Escutávamos num protesto silencioso uma desafinada que havia dado um golpe de estado no cara do banquinho-e-violão — aproveitando-se da intimidade unilateral forçada que surge da relação entre os bêbados assíduos e os garçons e cantores de bar — quando uma cena me chamou a atenção. Um sujeito, sacrilegamente, esvaziava os últimos cinco dedos de uma garrafa de Johnny Walker Black Label diretamente no chão do bar com uma atitude serena como a dos que fazem justiça e dormem bem à noite. O garçom noviço, em pé junto à mesa, olhava perplexo ora para o homem, ora para o chão, ora para todos nós (os sete gatos-pingados presentes) — que, obviamente, olhávamos para o whisky. Enquanto o leitoso Johnny chorava, derramado, percebi que a garrafa levava uma etiqueta daquelas com o nome de um dono bem-sucedido. Nos primeiros segundos, pensei que o coroa dedicava respeitosamente um gole “para o santo” e que santo de rico passa bem demais. Trinta segundos depois, comecei a desconfiar que não havia santo assim, tão cachaceiro, e passei a amaldiçoar a pachorra dos ricos em esbanjar sua abastança acendendo cigarros com dólares e lavando chão de bares de Yellow House com Black Label (que, agora, no piso, era só uísque). Nesse ínterim, o indivíduo — faltando um dedo para terminar a garrafa — parou de derramar o precioso malte e tranquilamente recolocou o vasilhame numa prateleira acima, encabeçada pelos dizeres Reservado para os Fundadores. Tive um ímpeto de gritar: “Ficou um restinho!”, pois detesto serviço malfeito, mas me contive. O derramante virou-se então para o empalidecido garçom (que estava ainda on the rocks) e, semi-levantado e dedando o ar com o dedo-dosador da mão direita, disparou: “E se ele vier dizer qualquer coisa, diga àquele filho-da-puta que foi João do Barro quem derramou o uísque dele”. Em seguida, prosseguiu, matemático: “E que, se estiver achando ruim, ele venha aqui, que eu dou seis... não, não... dou doze tiros nele aqui dentro... não, aqui dentro, não. Ali na calçada, eu dou doze tiros nele!”. Refleti que o homem devia ser comerciante, desses que gostam dos números redondinhos e contam tudo de meia dúzia em meia dúzia. Ainda sim, admirei sua consideração para com aquele distinto bar de tijolo aparente, num bem localizado subúrbio pied-de-morro do Recife. O garçonzinho, embriagado de perplexidade, deu meia volta e sumiu. O velho sentou-se, esvaziado. A música tornou a fluir, timidamente. O Mago e eu entreolhamos, levantamos nossos copos cheios e bebemos... saudando tacitamente mais uma noite em Casa Amarela.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Desarmado (ou Bobagens de Quando a Gente Gosta)

A construção de um adulto é uma mutilação. Ganha-se muitas obrigações, perde-se vários direitos. Perde-se o direito de ter dúvidas, de ser bobo, de falar sacanagem, de ficar bêbado, de pegar um ônibus desconhecido, de estar nu em casa, de andar sem destino, de estar desarmado. Mas quando se gosta de alguém, recupera-se o direito (e permissão) de novamente não ser crescido. Por isso, estar apaixonado é algo infantil (no melhor sentido). Anda-se a esmo por causa de qualquer jasmim mais cheiroso. Qualquer riso amarelo é de uma ternura radiante. Fica-se completamente desnudo de certezas (ou vestido nalguns trapos de seriedade mal tecida) e completamente bobo quando de um olhar encontrado com a pessoa gostada. A bobagem vira tratado filosófico; a sacanagem, singeleza. Conversa-se água, chovendo palavras no molhado, mas de boca seca de tanto estar de coração na boca. Na verdade, palavras secas de si, só para manter o fluxo do único fluido agora indispensável: mais um pouquinho do outro. Nada como a espera desesperada de cada palavrinha vazia de razão e cheia de doçura. Quando a gente gosta, fica desalmado. Isso mesmo: sem alma. Só uma carne-viva esperando um movimento elétrico do outro, que machuca e extasia num só tempo. Quando a gente gosta, fica descarado. Faz uma cara fechada de tempo nublado que um sorriso abre sem chave nem chuva. Quando a gente gosta, fica desarmado.

... bom demais gostar, ruim é ficar desamado.

domingo, 9 de março de 2008

Domingo (Parte II)

Domingo é um dia sem poesia. Passa-se o domingo a toque de controle remoto. Esse dia de descanso é o mais cansativo. Cansado, sozinho. O olhar encurralado nos cantos da sala procurando displicentemente uma saída. Mas, do domingo, não há saída. A única porta que existe se abre de meia-noite, mas ela dá direto na segunda-feira. Coloco um CD e ouço os rangidos do chão de taco enquanto ele toca e eu rodo pela sala. Jantar (sorvete) sozinho. TV. TV. TV. Não tem poesia. Uma pia de cozinha no domingo à noite definitivamente não é poesia. É raro um dia autenticamente feliz. Um domingo, então, nem se fala. Um dia feliz é como um poema no meio de uma página de jornal. Bastavam dois versos de Pessoa entre a (milésima) notinha sobre a violência no Recife e a resenha de Ypiranga um, Sport, zero. É bom assim: uma felicidade numa forma que a gente nunca espera. Não sei o que fazer da vida. Pai acha uma coisa; e mamãe — que Deus a tenha — achava nada. E ela estava certa: no fim das contas, é melhor não fazer nada até a hora chegar. É como conversar, como dançar. Um instante que é simplesmente melhor que o outro, e ninguém se sabe por quê. O problema é que a espera é cansativa demais. Essa vida é de espera. Essa vida com programas de índios xingu e calouros-mirins. Essa vida de domingo, de dormindo. Domingo é assim: no fim do dia, tudo que resta é uma sensação de que ele se foi levando alguma coisa muito preciosa e deixando um vazio que ocupa, na exata medida, o peito. Tô pensando demais. Melhor mudar pro Faustão.

domingo, 2 de março de 2008

Domingo (Parte I)

Já se disse que a gente morre um pouquinho a cada minuto. Pois bem, podem contabilizar que no domingo se morre dois pouquinhos (seja lá quanto isso for) a cada minuto. É triste. “A vida é assim. Mas há que se trabalhar pra viver.” Na verdade, não existe muita opção na vida. Aliás, só há uma: viver. A diferença é quanto tempo se demora pra descobrir isso e “escolher” essa “opção”. Há que se viver. Tem de se viver. Afinal, quanta desgraça é necessária pra que alguém consiga permissão pra ficar triste num canto por um tempinho sem ter que ir lavar os pratos? Pra que deixem descansar da vida por segundos (vale lembrar que dias são apenas uma multidão de segundos...). É uma inundação de tanta coisa da vida. Por isso, existem(?) os suicidas. Suicida é uma pessoa que morreu asfixiada de tanta vida. Não conseguiu tomar um fôlego. A vida, como as outras substâncias aquosas e mutáveis, afoga as pessoas quando engolfa. É quase uma morte acidental.