quarta-feira, 23 de abril de 2008

Na Casa do Sol

Quando era pequeno, fiz uma viagem pra casa do Sol. Pra mim, era uma estrada de sonhos flutuando em dentes-de-leão que se desprendiam de suas hastes banguelas, felinos, soprando suavemente pelo mundo. Estrada longa, longa, longa demais, que até perguntação de menino cansa. Viagem de girassóis e gerânios(!) e gerúndios de um sol se pondo num prá-sempre laranja. Estrada de flores de mandacaru indo ao largo do desconhecido, moldurando uma imaginação criança que cheirava o vidro do carro achando bom aquela flor-branca-sem-nome. Era cidade e asfalto e cidade e asfalto. Tantos sãos e santos haviam no nome daquelas vilas com carteirinha de cidade. Cumprimentei todos eles com meninice de calças curtas (querendo só parar para um picolé, na verdade). Quando cheguei, conheci a casa do Sol: era Piauí, era Maranhão. Nem precisava de água pra ser bonita. Seca, bela... é só questão de molhar as consoantes. É uma terra que vive só de sol... sozinha. Era casa de meus tios, todos meu pai. Meu pai que ficou na roça, meu pai que criava bois. Homens lavrados pela vida. Tinha jumento, que ia e vinha carregado de arroz, daqueles que conversam com o vaqueiro por ia! e eia!, arfando com as narinas crescidas feito os tremas sua eloqüência eqüina. Mas tristonhos. Burrinho desinteressado de vida, sem orelha em pé. A gente ia lá dentro do mato pegar saca de arroz com o bichinho conformista, arrazoado. Com medo de cumadre-frozinha e saci, mas com cipó em riste, se fazendo Dom Quixote mesmo montado em burrico de Sancho. Vem, menino, tem aventura para o almoço! Depois, feijão com nata e arroz branco de sobremesa. Jantar era diferente: feijão com nata e arroz branco requentado em noitinha morna. Aí o Sol cansado ia dormir. E a gente menino soliloquiava com as estrelas (que, como todo mundo sabe, são apenas sóis-crianças), perguntando como tava lá em casa, se o gatos tavam bem. Um dia, quando o dono da casa começava seu trabalho solar, fomos embora. E ele ficou pra trás. Somente. Soprando por cima do ombro uns convites luzidios de voltar que eu guardei no fundo da gaveta, sem saber que se apagavam quando a gente fica adulto e vê estrada feito estrada mesmo. E vê flor só feito flor mesmo.

sábado, 12 de abril de 2008

Dor-de-cotovelo

Ela estava linda. Olhei-a pela última vez, fingindo certo desprendimento, e me subiu pela garganta, com uma certeza absoluta, um “a gente se vê” pouquíssimo convincente. Quando engoli seco, desceu foi um vazio com gosto de água barrenta. Deu um abraço e, como de costume, foi-se e não virou as costas. Quando a gente se despede e não vira as costas, só pode significar duas coisas: ou se tem uma certeza implícita de que se verá a pessoa amanhã (a despeito das estatísticas da violência) ou isso simplesmente não faz diferença. E, como se sabe, quando a gente ama, esperar até o dia seguinte é muito tempo. Um aperto acerta o peito à medida que o olho perde de vista aquele “tu” dos poemas de amor que nunca escreveremos — ou que, escritos, serão só palavras que nunca virarão amor materializado, pois papel não agüenta amor de verdade: o poema é o amor maquiado e posto na vitrine. Agora, porém, tudo o que eu sentia era uma melancolia suave e irritante, incapaz até de me impulsionar a uma noite de bebedeira regada a lágrimas de fim de noite. Enquanto a observava descer a rua, pensava como é ingrato já ser passado. Seus olhos já não me viam: estavam brilhantemente vidrados no futuro, à frente. É uma sensação de ter ficado, de ter passado, de parado. Mas, convenhamos, conformismo é preciso. Então, vamos aos clichés: o amor é assim mesmo. Quando passa, é vazio, tristonho e elegante como um solo de trompete num jazz de Madeleine Peyroux. Quando está, é cheio, esfuziante e despojado como a sanfona de Dominguinhos. Secretamente, desejei-lhe o melhor e, mesmo sem vontade, fiquei com o pior para mim. Esse meu amor, no entanto, já não dói: alugou um quartinho no meu Bairro dos Amores e estará lá, quieto, para sempre. Só então senti uma dorzinha chata entre o pulso e o ombro. Era a tendinite.

Imagem: Zhong Biao