sexta-feira, 30 de maio de 2008

Mosaico

Pensando com passos divagares, caminho pelas ruas de uma Casa Amarela luxuriante. De tipos em tipos, afigura-se um mosaico primitivo das gentes. Nas descalçadas pedregosas, recostados às muradas, mendigos bem-humorados dedicam-se à tarefa interminável de separar o imprestável do que não serve para nada, dançando involuntariamente ao som da cúmbia que pigmenta os ares do início da noite. Mulheres rechonchudas resfolegam um cheiro gordo de pastel cumprimentando o céu com seus sorrisos de oito escalas, em acordes sonolentos de volúpia. As ancas disformes forçam espaço por entre roupas minúsculas buscando um toque da mão faceira do acaso. Taxistas parados, inseparáveis de seus veículos, nos quais por vezes encaixam-se, qual peça-motor, com gestos robóticos, observam mecanicamente os transeuntes e — por ironia — o trânsito. No inferninho, começa discretamente a entrada no caminho libertino das maravilhas da escravidão aos prazeres exuberantes e tristonhos. Carregadores de compras, olhansiosos, miram a porta dos sebosos mercadinhos, tocaiando felinamente consumidores pacatos e bovinos. A recém-noturna alegria casamarelense choraminga alto, esticando com avidez os braços para quem quer que passe. Frutas infelizes jazem mortificadas nos carrinhos-de-mão, conhecendo seu destino de não terminar o dia, pois as frutas e as feiras, como as flores presenteadas, são entidades diurnas, que se apodrecem com o pôr-do-sol. As flores, aliás, resistindo ao solo infértil da grosseria que grassa nas ruas do bairro, comparecem à sua venda todos os dias, esperando transformarem-se em gentileza para cumprirem sua razão de ser. Vendedores de sapato vestidos de um rigor engravatado aglomeram-se nas portas de suas lojas aguardando diariamente, mais do que clientes, a vertigem de um daqueles dias lucrativos sem muito significado real: um dia de namorados, de mãe, de pai e, sobretudo, um Natal após o outro. Dezenas de cachorrinhos idênticos — de pelagem parda, focinho escuro e olhos amigos — mendigam à toa com os maltrapilhos mandingueiros, implorando silenciosamente migalhas de afeto e gestos que saciem sua fome. No canto inferior direito, eu, com um constrangido Guimarães Rosa, ando fantasmagórico e lentamente sorrio para dentro pensando o quanto gosto e detesto esse mosaico infame, mas, decididamente, alegre.

sábado, 24 de maio de 2008

Nota Policial

Regina Maria da Silva, dona de casa, 36, saiu de casa às sete, oprimida, cheia de nós e amarras nos cabelos e na alma desalinhados, a caminho da residência da mãe. Um elemento que atende pela alcunha de Gilson, 41, amancebado com a vítima desde 1998, evadiu-se às mesmas sete horas de um bar nas vizinhanças, trope-tropeçando em suas próprias pernas, penas e pesares. Regina Maria chorava a definitiva gota d’água daquela relação seca pela rua deserta em direção ao ponto de ônibus. Gilson sorvia a definitiva gota d’aguardente daquele copo que era prisma e metáfora da ótica deturpada com que via a vida. Ela tinha nas mãos os dois reais e quinze centavos insuficientes para volta e subiu no ônibus assim mesmo, como adivinhando que era uma passagem só de ida desta vida. Gilson pegou a bicicleta Caloi, barra circular, aro 26, e seguiu dando voltas pela rua intentando, a cada círculo incompleto, a direção da casa da sogra. Regina Maria desceu às sete e trinta e três em frente à Padaria Pão de Mel, na esquina da Rua Porto Alegre com a Av. Fernando Feliz, amargurada pelo amor azedo e espinhoso que nela não morria e insistia em circular pelas veias espetando o coração a cada volta completa. Gilson desceu pela Av. Fernando Feliz às sete e trinta e quatro carregando — segundo testemunhas não-oculares — um pacote suspeito cheio pensamentos tortuosos. Após esperar na calçada um hesitante minuto de sessenta e dois segundos, Regina Maria deixou cair um pedaço de memória que a fazia esquecer de Gilson e dirigiu-se à esquina. Nesse exato instante, Gilson chegava ao cruzamento com a Rua Porto Alegre. Ao ver Regina Maria, o indivíduo largou a ébria bicicleta na calçada e dirigiu-se abruptamente na direção da vítima. Sacou o pacote dos quartos, desembrulhou-o e disparou: “Perdoa, meu amor”, segurando uma cocada sofrida na mão. Gilson ajoelhou-se mais uma vez como fizera no dia em que nunca se casaram. O pedido atingiu Regina Maria entre os pulmões, causando-lhe uma súbita falta de ar e um grito mudo na boca do estômago. Vitimada por uma onda de amor fulminante, ela caiu em seus braços arrependidos. O caso flagrante foi registrado na 16ª DP, e os acusados de “formação de casal feliz” foram liberados para responder em liberdade.

domingo, 11 de maio de 2008

A Chegada

Anos depois, angustiava o som inconfundível do destravar da porta. Inconfundível porque humanos, ao contrário dos gatos, não distinguem bem sons com o ouvido: ouvem todos iguais, mas sentem diferentes. Pois era justo aquele estalo que despertava da sonambulância enferma pelo mundo. Um mundo inteiro girava oposto àquela maçaneta da casa onde tudo fazia sentido. Partira sem olhar sua mãe no rosto, com desprezo e um pouco de irritação. Não entendia como alguém que passou tanto tempo viva poderia ser tão ingênua, carinhosa e tão alheia ao mundo. Valente, em vez da mãe, abraçou o mundo. Sua valentia, com o tempo, vestiu-se de vergonha. Imaginava sua mãe velha agora. Uma avó velha, varrendo, varrendo poeiras inexistentes, farelos de memórias vagas, na verdade. Partira sem dar esperança nem abraço. Ela aceitaria agora aquele abraço tão velhinho? Não dar um abraço devido é um tipo de apropriação indébita: quando ele vem para nós, já não é nosso, é para ser dado. Pensando nisso, entrou sorrateiro como uma surpresa. Sentiu uma neblina translúcida e estática suspensa no ar. Eram memórias que ainda não tinham se esfarelado e volitavam vivas pela sala, formando uma nuvem densa, mas transparente, que os parcos raios de sol da tardinha nublada e chorosa umedeciam com um brilho frio. Aspirando fundo essas lembranças, procurou esperançoso pela casa. Mesa arrumada para dois. Esperava-o? Na cozinha, finalmente distinguiu um vulto curvado, voltado ao trabalho vão da vida. Sentiu ímpeto de chamar por ela. Sua mãe, mamãe. Quantas vontades de voltar não engoliu a goles de orgulho para não ver a sentença de perdão perpétuo no rosto dela? Aproximou-se e tocou seu ombro, já antecipando um sorriso incontido no rosto. A velha largou as vagens e virou-se. Tia. Tia? Não, não, letras erradas. Mãe, não. Morta. Estava morta. Morrera lentamente, num caso único de compaixão da Morte, que — em troca de sofrimento — deu-lhe mais anos de esperança pelo retorno dele. Nunca lhe ocorreu, nunca. Tinha uma crença sólida e infundada de que o mundo fazia sentido. Não faz. Vagando para a saída, sentia ânsias de vomitar o vazio de revirava em suas vísceras. Procurava uma explicação, mas só achou um vácuo que sussurrou: depois que se parte, chegar em casa não é mais volta.

Baseado no conto A Partida, de Osman Lins.
Escrito ao som de In Every Dream Home a Heartache, de Jane Birkin e Brian Ferry.