sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Olinda à Noite e a Traição do Mar com Celestina

Dizem que Olinda à noite é a amante despida dos acasos do Mar. No inverno, na menopausa da folia carnavalesca, ela se entrega ao dono das ondas suadas e mornas de trabalharem o calor do dia. O Mar, de maré manhosa, ora agride, ora acaricia o perfil de sua nudez: pedras acintosas na praia desnuda. Mais tarde, depois que Olinda se desmancha pelos seus ardis, o Mar se esgueira e vai embora pra se juntar com Celestina Cintilante, a dona do céu. É que nestes tempos friorentos, os dois se aninham na safadeza: ela joga por cima seu lençol de estrelas cintilosas; ele, seu cobertor de barquinhos feitiçados em luzes pela anuviação. A essa altura, o Horizonte, que já tem o trabalho de separá-los durante o dia, dorme fatigado. Assim, enganam o eterno empecilho de seus amores e ficam ali, debaixo do grande pano furado de luzinhas. Distante, Olinda acorda sozinha e fica só olhando pela janela do céu. Desolada, ela espera de novo a Manhã, que sempre traz de volta o amante infiel. O Mar, com suas carinhondas, todo dia consegue o implausível: que Olinda perdoe a traição e o receba novamente na cama de suas areias ariscas.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Os Homens Vazios, de T. S. Eliot

Uma homenagem ao Dia do Soldado (25 de agosto).

Os Homens Vazios
T. S. Eliot (Tradução: Heber Costa)


I

Somos os homens vazios.
Somos os homens empalhados.
Tombando juntos
com capacetes cheios de palha.
Que desgraça!
Nossas vozes ressecadas,
quando sussurram juntas,
são mansas e incompreensíveis
como o vento na grama seca
ou ratos por sobre os cacos
de nossa adega consumida.

Forma sem formato,
sombra sem cor,
Força paralisada
num gesto sem movimento.

Aqueles que viram com os próprios olhos
o Reino da Morte.
Lembrem-se de nós
— se é que lembrarão —
não como almas perdidas e violentas,
mas como os homens vazios.
Os homens empalhados.

[...]

III

Esta é a terra dos mortos.
Esta é a terra dos cactos.
Aqui os ídolos de pedra são erigidos,
aqui recebem súplicas
da mão de um homem morto
sob os últimos cintilos
de uma estrela que se apaga.

Não é assim que é
no Reino da Morte?
Caminhando na solidão
até a hora em que
trememos de ternura
e os lábios que outrora beijavam
fazem preces às pedras fendidas.

IV

Os olhos não estão aqui.
Não há olhos aqui,
neste vale de estrelas decadentes,
neste vale vazio.
Esta mandíbula fraturada de nossos reinos perdidos.

E, neste último lugar de encontro,
tateamos para junto dos outros
fugindo à fala.
Reunidos às margens de um rio profundo.

Sem a visão, a menos que
os olhos reapareçam
como estrela perene,
rosa multifoliada
do Crepúsculo, o reino da Morte:
a esperança que resta
aos homens vazios.

V

[...]
Entre a idéia
e a realidade,
entre o movimento
e a ação,
recai a Sombra.

Porque Teu é o Reino


Entre a concepção
e a criação,
entre a emoção
e a reação,
recai a Sombra

E a vida é longa demais

Entre o desejo
e o espasmo,
entre a latência
e a existência,
entre a essência
e a descendência,
recai a sombra.

Porque Teu é o Reino


[...]

Porque é assim que o mundo termina
Porque é assim que o mundo termina
Porque é assim que o mundo termina
Não com um estampido,
mas com um lamento.


Leia o poema original.
Ouça o poema original.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Suspiros e outros mistérios que a gente respira

Os ditados são, em geral, uma maneira particularmente repetitiva de explicitar o que o óbvio e o bom senso já dizem com a eloqüência de um tapa na cara. Mas, como de tudo se aproveita e estamos em tempos de reciclagem, é possível achar uma coisa ou outra na “sabedoria popular” que cabe nos ouvidos e com a justeza de uma nova idéia. Tomemos um dito como, por exemplo, “A quem ama o feio, bonito lhe parece” (há versões diferentes, mas a idéia é basicamente essa). É algo de uma verdade cruel. E pior: a recíproca também é verdadeira. Quando se deixa de gostar de alguém, o rosto é o primeiro a sofrer uma mutação concreta. O nariz arrebitado, em vez de elegante, acaba metido e mal-desenhado. A boca carnuda são só lábios grosseiros. Os cabelos desenvoltos são um ninho de cobras acordando com fome. A pele envelhece, surgem marcas e cicatrizes intrusas, que nunca tinham estado lá. O fervor da paixão fenece no tom opaco e inexpressivo dos olhos. Os movimentos coreografados do corpo tornam-se o desinteressante balé da rotina. A beleza afinal, se põe por detrás dos montes do marasmo, levando consigo os últimos raios de uma perfeição exagerada. Até a mais bela das criaturas agoniza em descaso e se esvai na viscosidade do cotidiano. É isto: quando se deixa de gostar, a boniteza empresta a casa à feiúra. Pois é. Ao que parece, quanto mais verdadeiro o amor menos transforma. A pessoa amada de nada disso precisa: ainda que permaneça a mesma, é bela além de suas feições; é solidamente construída de sensações, gestos e palavras. Tudo isso, quando aquecido na memória, torna-se num vapor etéreo que a gente respira fundo a cada instante. É disso, minha gente, que são feitos os suspiros de amor.