segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Conto-de-fadas que Queria Ser Romance

Era uma vez, num reino muito, muito longe, a muitas e muitas palavras de distância, um conto-de-fadas bem pequenino que queria ser romance. Mas não um desses romances que não param em pé na estante. Queria ser um Romance! O pobrezinho não era muito bem pontuado — era até meio feio —, mas vivia suspirando e sonhando, com suas frases curtas sustentadas por suspensórios, em crescer e ficar grande e coeso para contar, não de crianças que se perdiam na floresta, mas de dragões e cavaleiros. “Um dia”, pensava ele com seus travessões, “vou ter mais de trezentas páginas”. Como é do costume dos infantes, de paciência não tinha nem uma vírgula. Decidiu, então, que ia crescer mais rápido. Assim, enquanto as cantigas-de-amigo brincavam de roda, passou dias e dias tomando as providências: tomou muita sopa de letrinhas, brincou de nome-lugar-objeto até enjoar, devorou todos os brotos de fábulas que encontrou pelo caminho — tudo isso para ganhar mais palavras e se tornar um grande e novelesco romance. Mas a Natureza é sábia no seu tempo, e o continho-de-fadas empanturrou-se demais e ficou tonto, meio confuso, e acabou perdendo a coerência. Resultado: na pressa, engoliu tantas palavras aleatórias e formou tantas frases sem sentido que, em vez de romance, terminou obeso e disforme como tese-de-doutorado, coitado!

Moral: Devagar se chega a romance.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A Guerra Nossa de Cada Dia

Hoje, vou escrever sem versos nem estrofes porque estou triste e abatido demais. Vou quebrar meu voto de só escrever algo que tenha algum valor para os outros também. Vou macular este espaço. Aqueles que buscam alguma literatura nestas palavras torpes e prosaicas hão de me perdoar. Pra fazer literatura, tem que se falsear um pouco o sentimento... ser fingidor, como já disseram. Hoje, não agüento fingir. Não agüento mais fugir. Sei que vão debochar de mim porque estou usando uma metáfora de guerra, mas não consigo ver descrição melhor. Deus, até onde vale a pena se esforçar para ser uma boa pessoa? Não sei. O pior, no entanto, é o inferno de não ter opção. Para que não tem talento para a patifaria, não existe a possibilidade de cair na maldade. Simplesmente não existe. Dá-se um jeito, contorna-se o problema, recua-se ante o inimigo. Ser maligno: jamais. Os que nem tentam é que estão certos, pois ser maligno é uma arte. Não é para qualquer idiota. Tentar ser mau sem talento é cair em desgraça. Esses que vocês vêem presos aí na TV são os que não levam jeito ou são burros demais até para serem maus. Os maus mesmo vencem todos os dias, malditos. Dia a dia, acordamo-nos, levantamo-nos e vamos à luta somente para sermos abatidos e cairmos e levantarmos de novo para — quem sabe? — comemorar uma ou duas vitórias a cada 365 dias. Felizes daqueles que acreditam na vitória final, pois, de perder tantas batalhas, fico desconfiado se realmente chegarei ao fim da guerra para descansar à sombra da vitória. O mais difícil é isto: você tem que vencer a guerra, mas não vale matar o inimigo. O que resta? Perdão e paz unilaterais... só você cede. Estou cansado desse perdão e dessa paz humilhante que destroem meu espírito. Mas existe cessar-fogo unilateral? Existe, meus caros. Chama-se rendição.

domingo, 7 de setembro de 2008

Realismo Humano

Às vezes, sinto uma ternura tão grande pelo ser humano que meu peito estremece. Mesmo feio, despido de sua dignidade, ainda inspira uma força tão grande ou uma fraqueza tão profunda que olhar nos seus olhos é como mergulhar pelas janelas adentro na alma de um deus. Em outros momentos, no todo-dia, sinto um desprezo pela sua pequenez megalomaníaca, agindo-se como estrela de seu único céu. Sem dúvida, a maior conquista do homem é conseguir variar entre a extrema mesquinhez e a mais insuspeita nobreza. O que me incomoda, por outro lado, é que não me permitam ter essa opinião dúbia como a própria natureza humana. É estranho como a idéia de amadurecimento esteja associada a um enrijecimento das opiniões, uma cristalização das idéias que tenciona exilar a tensão da dúvida nos tempos de uma adolescência titubeante. A humanidade tem essa mania estranha de ir na contramão das coisas. Afinal, com as frutas, o amadurecimento é diferente: primeiro, enquanto estão crescendo, elas são duras e intragáveis; depois, tornam-se macias e palatáveis. Nos adultos, ser flexível é sinal de falta de firmeza de caráter e, por conseguinte, das decisões. É mesmo muito contraditório: embora seja inegavelmente instável, o ser humano sempre se espelha na certeza das verdades únicas. Curiosamente, não são poucos os que se apregoam “realistas”. Mas o que é ser realista senão afirmar que se acredita que tudo é conforme sua própria realidade individual? Que, verdadeiramente, sabe o homem de outras realidades senão aquilo supõe, induz ou deduz? Diante disso, a recorrente frase “Eu sei”, oferecida como consolo aos que sofrem, resulta nada mais do que um conjunto vazio — uma farsa bem-intencionada que acaba sendo descoberta em flagrante na resposta do olhar de outrem que pergunta: “O que você sabe?”. Sei que nada sei. Isso, sim, eu sei.

Escrito ao som de Je Pense à Toi, de Amadou & Mariam.