segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Retrovisor

Nada mais curioso que o retrovisor. Parado num sinal, lanço o olhar automático que todo motorista conhece ao espelho central e sempre me aparece ali uma história, uma cena ou, pelo menos, um esquete. De dentro da nossa bolha automotiva, é o buraco da fechadura na porta do mundo. Quase sempre a cena é de algum tipo de asseio diário. A privacidade de um carro é como a intimidade de um banheiro. Sinal fechado, é hora de checar as auto-peças: olhar os pêlos do nariz, procurar aquele incômodo no dente, limpar o ouvido, antes de seguir pra vida. Mas nem só do cotidiano indiscreto vive o retrovisor. Nele estão guardadas acaloradas discussões marido-mulher, amigos semibêbados, taxistas entediados. Quando meu rádio está ligado, muitas vezes um casal de namorados, emoldurados pela voz de mogno de Elvis com cantos em bronze de Sinatra, beijam seu mais tenro e oportuno beijo. Se escuto o noticiário, o retrovisor é como uma TV estrangeira, com uma dublagem estranha das conversas do carro de trás. Melhor ainda são as crianças: sempre tramando alguma trela no banco traseiro, enfiando sua curiosidade em todas as bolsas e papéis que lhes fazem companhia. Às vezes, um cachorrinho maroto, de cara no vidro, tenta entender o show de luzes e cores das pessoas que não se importam. Estou vagando nessas divagações quando brilha o verde e meus olhos displicentes e autômatos deixam para trás a janela da vida inteira.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Delírios amorosos

Te vi pela primeira vez num verão vil em teus olhos primaveris. Era só uma tarde suja de um dia torto, mas tudo ficava certo nas órbitas precisas de teus olhos, circundando firmes minhas intenções. Teus cabelos ondulavam lavados por longas lágrimas antigas, longas línguas sofridas, lambuzando teus lábios de vento, corda que me enforcava a cada centímetro. Se só uma vez eu fosse maior que teus desejos, que teus olhos, fugiria às tuas inocências tristes e teus olhos pedintes. Mas não fui, nem sou. Sou apenas uma alma triste, um soul cheio de blues. Sou dependente químico de tua sinceridade inebriante — um vício que até hoje me oxigena e me assola, solamente hoje. Um beijo roubado foi crime, delito e cadeia de minhas prisões, pressões que me prenderam. E a epiderme de meus maiores medos descama, descamba louca nas águas que derramaste de meu âmago, teu amado amigo, macabro vidro que te refrata, que contém o que contam a cada nova história, a cada novo dia, a cada nova vez que te tenho nos meus quadros, pintura rústica de tempos que nunca foram.

sábado, 14 de novembro de 2009

Sinais celestes

Onde estás? Onde? Dizem que está nas flores, nos homens, nos gatos... mas não te vejo. Recebi tuas ordens, um memorando, testamento antigo de herança deixada de um pecado indelével. Estou aqui, chorando, e gostaria de saber se devo parar tudo, se devo voltar do “ide e pregai”? Vejo uma razão que tudo explica, tudo vê, tudo ouve, uma ciência onisciente e um Deus imóvel, imaculado, de mãos atadas pela teoria das cordas e buracos negros. Só um pouco de tua clareza para incendiar minha escuridão, porque estou cansado e preciso ver algo. Não precisa ser um arbusto flamejante de uma fé patriarcal, preciso só de um sinal: qualquer coisa que baste a um coração despreparado. Se me fosse dada ao menos uma de tuas faces — nem precisa ser a outra —, me recobriria do teu manto de bênçãos. É triste quando a bênção maior de uma alma é pensar que na ponta de uma corda reside a porta de universo sem deuses. Mas quando será? Pode ser hoje ou no dia de talvez. Que me chames alto e digas meus pecados, que não sou digno. Talvez eu esteja querendo um casamento do céu com o inferno, da mais divina e pura paixão mundana, do mais profano sacramento com a mais santificada heresia. Não escreverei nem mais um verso até que me digas que devo seguir. Isso é só porque não te sinto mais. Estou acuado, estou sob um holofote celeste, focalizado pelas estrelas, testemunhas que me acusam e apontam cada passo mal dado. Cansei de ser semente. Deixa-me crescer planta e ver um sol de redenção, que seja amor e gentileza, chuva após a seca. Basta de exigências deste corpo que não pode mais. Se hás de ceifar-me porque fraco, que comece a colheita.


Inspirado em Anything e The Lines of My Earth, do Sixpence None The Richer.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Beijo

Sentiu uma dormência que despertou seus lábios e fechou seus olhos. Era mais do que um gesto, era uma força. Gravidade irresistível unindo bocas em redor das quais orbitavam cabeças numa coreografia que nunca fora ensaiada, mas tinha a harmonia das danças do vento com as árvores. E quando dedos escalaram até a nuca, arrepios apressados percorreram a pele indo a lugar nenhum levar uma mensagem que não fazia sentido, apenas sensação. Um suor embebido num sentimento sufocante encheu de vida as linhas da mão, e se uma vidente ousasse interromper diria que era uma névoa difusa, mas tão cheia de novidade que só podia ser o presságio passageiro de um futuro mágico. Uma tempestade elétrica se criou, eriçando cabelos e mamilos, e o relâmpago que se seguiu cristalizou na mente um instante que nunca mais se repetiria. Não tinha passado nem futuro: era uma fotografia, é sempre presente. Naquele presente que não passou, naquele exato momento, a brisa descansou de seu eterno despetalar das margaridas. O rio parou diante de um segundo estático como a pedra do silêncio, um divisor de mágoas entre duas vidas. A natureza fez uma reverência calada, um minuto de ciência. No centro daquele turbilhão de cheiros vivos e cores turvas, ele apenas era. Não sabia se era a primeira, a milésima ou a última vez. Não importava: aquele era o beijo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Sobre textos alegres

É difícil encontrar um poeta que escreva bem versos alegres. E isto é o mais próximo que consigo de escrever um texto inspirado na alegria. Ela é um sentimento auto-suficiente, que se expressa somente através de sorrisos involuntários, brisas carinhosas e flores pacíficas. A tristeza é que exige mais, exige pensar, dizer, compreender. Estar triste geralmente é sinônimo ponderar — mesmo que seja sobre a mesma coisa várias e várias vezes. Se houvesse apenas alegria, talvez não existissem poemas, contos, romances. Não haveria tempo pra isso. Estar alegre exige apenas aproveitar instantes infinitos de uma inexplicável e inexprimível vontade de ser sem dizer. Imagens poéticas, por mais belas e agradáveis que sejam, estão embebidas numa melancolia profunda, encravadas na utopia de um mundo bom. É maravilhoso que esse mundo bom exista, mesmo que se apague com o ponto final de um texto.

sábado, 19 de setembro de 2009

O Dia de São Valentim

Neste leito frio e passageiro que corre inevitável para o mar onde os males se esquecem, deitei o barco de minhas esperanças e não mais o vi. Por seus olhos, discurso, espada fui mortalmente trespassada, e meu primeiro rubro amor dormiu em lençóis de realeza. Oh, minha doce, doce ingenuidade! Foste sacrifício abraaônico, carneiro imaculado que tomou lugar de um amor sem bênção. Meu príncipe de perfume gentil, hoje me sopra somente um desprezo inodoro. Prometeu-me a primeira flor da primavera, prazeres sem palavras; mas nos campos encontrei só pétalas apáticas de um amor que mal-me-quer. Oh, amor infeliz, cuja semente pousou em terra estéril somente para ser sufocado pela loucura daninha. Ele se foi, se foi e não mais voltou. Só me resta segui-lo pela estrada cristalina que começa no poente e finda no mar sem fim. E as ervas e flores malditas serão a coroa bastarda do meu reino de um só dia — pois deitei-me e fui para sempre rainha no dia de São Valentim.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A Não-Perspectiva

Se os limites do corpo humano fossem fronteiras que tolhem também a alma, não desejaríamos mais do que querem os cães e os coelhos. O espírito humano é feito de matéria etérea inquebrável, forjado na chama da vontade e resfriado no poço da razão. Do fundo de sua pequenez, o homem dobra a natureza contra ela mesma: no calor, usa a água; no frio, usa o fogo. Embora tenha arroubos de grandiosidade e demonstre sua força, na maior parte do tempo a Terra se curva aos desejos do mamífero sem pêlos. Não importa quão miserável a situação, o humano subsistirá como puder. Mas qual a fraqueza desse ser tão poderoso? A resposta é uma tautologia: a fraqueza do homem é o homem. Não é o homem contra o homem, e sim o homem contra si mesmo. O homo sapiens sapiens só sobrevive enquanto enxerga um futuro — capacidade que foi concedida a ele apenas. Isso é o que explica o fato de que homens e mulheres torturados, famintos, derrotados possam nascer vivos num novo dia. Do mesmo modo, por antítese, explica porque pessoas saudáveis, ricas, vencedoras acabam desistindo da vida e tomando a amarga pílula que sai do cano de uma arma. Ante a perspectiva de um não-futuro, valores e princípios acabam jogados ao vento, amores são desfeitos, riquezas são desperdiçadas, vidas tomam rumos inesperados. Enfim, não importa quão fundo seja o poço: o veneno do homem não é a desgraça, é a não-perspectiva.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Aquele que Dorme no Vale

Arthur Rimbaud (tradução livre de Heber Costa)

É num estreito verdejante em que canta um rio,
Decorado com arbustos em farrapos prateados;
Que, sobre montes altivos, brilha o sol alfario:
Um pequeno vale onde caem raios espumados.

Um jovem soldado, de boca aberta, sem chapéu,
E a nuca apoiada em frescas azaléias azuladas
Dorme, deitado na relva, sob o manto do céu,
Plácido, num leito verde com gotas iluminadas.

Com os pés nos lírios-espada, dorme, brando.
Sorrindo como uma criança doente delirando.
“Natureza, aquece-o, pois frio tem feito.”

Suas narinas estão indiferentes a qualquer perfume;
Ele dorme ao sol, tranqüilo, qual espada sem gume,
E com dois buracos vermelhos no peito.


Original:
Le Dormeur du Val

C’est un trou de verdure où chante une rivière,
Accrochant follement aux herbes des haillons
D’argent ; où le soleil, de la montagne fière,
Luit : c'est un petit val qui mousse de rayons.

Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue,
Et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
Dort ; il est étendu dans l'herbe, sous la nue,
Pâle dans son lit vert où la lumière pleut.

Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
Sourirait un enfant malade, il fait un somme :
Nature, berce-le chaudement : il a froid.

Les parfums ne font pas frissonner sa narine ;
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine,
Tranquille. Il a deux trous rouges au côté droit.




Em homenagem ao Dia do Soldado, 25 de agosto.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Terra Arrasada

3 da manhã. O relógio era só o marca-passo da minha insônia, e eu enfartava a cada tique. Queria que ela voltasse. Há um ano estava longe — e se afastava cada vez mais. A distância que nos separava era ligada apenas por uma ponte de olhares cruzados na mesa do jantar, balançando insegura sobre um abismo de silêncio. A saudade de quando eu e ela éramos nós pesava sob meu travesseiro como uma arma carregada de uma esperança de chumbo. Restava dar um tiro no escuro. Mas eu apenas olhava fixamente o teto, projetando cenas em preto-e-branco do filme cego da felicidade, memórias que se esqueciam de mim a cada dia, indo embora sem se despedir. Era assim que passava o trem das noites em direção ao túnel que não tinha fim — muito menos luz. Isso não podia continuar. Olhei. Uma indiferença bela e imóvel dormia ao meu lado. Num último impulso, minha mão minha fez uma jornada para o velho oeste de nossa cama, passou pela fronteira e tocou algo frio. “Que foi?”. “Nada”, eu disse. De costas, seu corpo era alheio, estranho, uma lápide sem palavras que marcava nossa vala comum. Enterrado até o pescoço, olhei conformado a esperança ir embora pela porta que o amor deixara aberta. Na janela, o sol nascia pela última vez sobre essa terra arrasada pela praga do tempo. Restou só um deserto — e dois estrangeiros numa terra de ninguém.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Desamor

Do alto da tua torre de cal e giz, um sólido apartamento de três quartos, observo os carros quilômetros abaixo: glóbulos brancos e cinzas que pulsam no corpo da cidade morta. Aqui o conto-de-fadas desencantou. Meu pesadelo… caindo, caindo, da tua janela, e tu não jogas tuas tranças nem me acordas com teu beijo. Um vento frio me leva para o inferno lambendo lascivamente meus cabelos e regelando meu hálito, antes cálido de teu sopro. Foi tu quem me empurraste, eu sei. Liberto das tuas masmorras, eu morro. Súbito, sou só eu e um nada que nunca termina de cair sobre mim. Vejo teus braços estendidos, cristalizados numa pose que pode ser um querer alcançar e um querer largar. Ambígua, como tu fostes todavida. Essa fotografia de tua alma não tem aura, nem brilho estranho. Apenas um negrume preto-e-branco que sai dos meus olhos desiludidos. Enquanto caio, observo os que voam, sustentados em asas invisíveis, plumadas de sonhos macios. Lanço-lhes uma maldição, desgraçados. Se ao menos eu parasse de cair, se uma corda me laçasse — nem que pelo pescoço —, eu deixaria de sentir. Mas nada muda, teu sapato nunca foi de cristal. Era apenas um vidro sujo que embaçou meus medos e embalou minhas paixões mais insensatas, como sempre serão as paixões. Enfim, tua voz me chama e me diz: “Melhor você ir embora agora”. Portas descem e elevadores se abrem lentamente. Antes a morte súdita, súdita da minha vontade. Mas não. É só isso. Nada de drama. As luzes não se apagam, e a cortina não desce. Sou só eu, nu, num palco frio, humilhado, exposto à pena e ao desprezo do meu único público: teu desamor.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Os que vão e os que ficam

A amizade é uma coisa realmente estranha: a paixão pode destruí-la, as provações a tornam maior, a distância absolutamente não lhe faz diferença. Se fosse reduzi-la a uma definição, eu diria que é a capacidade de não mais sentir desconforto ao lado de alguém. Toda relação humana começa com o desconforto — esse é o nome daquela música estranha que nos obriga a seguir certos passos enquanto dançamos, mascarados, no baile das convenções sociais. Tem sido assim desde que as mesuras das cortes monárquicas foram abolidas: dançamos instintivamente agora. O desconforto nos obriga a falar, dizer nada só para dizer alguma coisa. Cantamos em tom mais alto que o nosso, num falsete caprichado. Quando a amizade chega, tiramos as máscaras, relaxamos o corpo, deixamos cair o falsete para recuperar nossa voz. Se fosse falar dos três aspectos acima, eu diria que a paixão é sua inimiga — não passa de idéias cristalizadas, servas da vontade, disfarçadas sob o manto de princípios e valores. A paixão religiosa, política, esportiva ou amorosa… Essas podem fazer tombar uma amizade. Já as provações, estas são suas aliadas. Nem vou me demorar nisso, pois é um lugar-comum dizer que as dificuldades dão à amizade uma solidez maior. A distância, por fim, pouco lhe importa. Não faz diferença se São Paulo, Manaus ou Ipswich. Nada vai mudar o conforto que uma amizade traz. O conforto é um silêncio que se aconchegou bem e agora dorme despreocupado. Mas é um silêncio conhecido, familiar, filho da confiança com o tempo. Essa é a dádiva da amizade: neste mundo de palavras, os amigos são as únicas pessoas com quem podemos estar verdadeiramente em silêncio.

domingo, 12 de julho de 2009

Palavras, Palavras

Palavras, palavras… Elas imploram aos pés de meus ouvidos, tentando desesperadamente não cair no fundo do esquecimento que se precipitou dos teus equívocos. Elas não têm para onde ir: ficam rondando minha desvontade, querendo derrubar-lhe o prefixo. Quando menina, já dei tanto ouvidos àquelas mesmas palavras açucaradas que terminavam sempre com o amargo de um beijo de despedida. Pior despedida é mesmo aquela que nunca foi anunciada. É o beijo rotineiro que se distraiu, leviano, e sem saber que era o último, não olhou para trás. No dia seguinte, a boca estará seca, ardendo com a tristeza salgada que saltou aos olhos durante a noite. São essas mesmas palavras que se tornam sal ao cair nos ouvidos, as que foram prostituídas por interesse... isso mesmo, palavras-mentiras. Lavradas em tiras, finos cortes no coração. E essas rosas mentirosas, emoldurando as palavras desgastadas que me dizem bela, pode dá-las a outra, alguma que ache gosto no mel viscoso que une cada uma dessas letras desgostadas. Palavras frágeis e fáceis como uma brisa, esvoaçantes. Sei que virão pousar nos meus ouvidos, sibilando sílabas surdas e soprando sonoras, mas nunca mais deitarão no meu peito. São palavras soltas que tu semeias ao vento, mas não colherás nada do meu coração de ventania.


Inspirado em Paroles, Paroles, de Dalida & Alain Delon.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

A Culpa

Durante os dias, perambulava abatido, com a batina lhe pesando negra sobre os pensamentos. Embora ela não contasse mais de treze primaveras nas contas do rosário, queria conhecê-la numa noite infinita, sem céu nem inferno. O ministério sucumbia cada vez mais aos mistérios que o atormentavam. Ela tinha um rubor perverso nos lábios, mesmo entoando canções sacras. Sem conseguir olhar diretamente as janelas de sua alma simples instaladas no seu rosto, adivinhava suas formas sob o vestido, seios firmes e quadril sinuoso. Por mais de uma vez, teve oportunidade de lhe propor sua vergonha, mas a culpa puxava as rédeas de seu colarinho branco, sem mácula visível, e sufocava palavras proibidas: bunda, peito, sexo. Precisava absolver-se, achar um dono para sua culpa. Livrar-se dessa santidade leprosa que o deixava intocável. Ela era a dona do seu pecado, a própria culpa. Sim, sim. Sua indiferença coberta de pudor era apenas o disfarce de uma Vênus febril, ele tinha certeza agora. Seus olhares despropositados, sua roupa discreta e folgada, seu jeito comportado... sim, era tudo uma provocação. Não era culpa dele. Convenceu-se. Na quinta, após o discipulado, do alto de sua autoridade chamou-a para exortá-la. Era sua obrigação divina. Cobrindo-a de maldições infernais, desabotoou-a de sua religião e despiu-se de sua reverência. Toda punição era pouco, mas ele haveria de ser brando em nome da misericórdia. Sem entender, ela angustiava-se ante o paradoxo de sentir nojo de seguir a orientação “divina”, a obra que lhe renderia sua própria salvação. Ao fim, sua alma confusa não se sentia redimida. O medo de um inferno era grande, mas a verdade lhe gritou tão desesperada para que abrisse seus olhos, que ela sentiu algo errado e tentou fugir. Com o dobro de sua força e um terço nas mãos, ele a agarrou. O terço estrangulava aquela trombeta que ia anunciar sua condenação. Era a extrema unção de seu pecado. Restava achar uma pá e enterrar não a sua culpa, mas a dela.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O Estranho

Depois de tantos anos, achei que já sabia. Num mundo que fazia sentido, as previsões do tempo estavam sempre certas. Achei que podia ler a mímica das nuvens, a língua de sinais de um céu que não tinha mistérios. Não via que a sombra estava sobre mim, e eu sonhambulando. Talvez eu tenha visto, mas pensei que havia amor suficiente em mim para conversar com sua mudez. Metida num silêncio escuro, você mente: “vamos superar isso”. Então, provei seus amigos, seus gostos, suas músicas, mas — por excesso de peso ou desprezo — não caíam bem: sufocavam meu pescoço ou apertavam meus braços, justas demais. Mesmo acertando em todos os presentes de aniversário, nunca soube o que você queria. Achei mesmo que podia prever a chuva nos seus olhos nublados. Quando o tempo esfriou e você não voltou pra casa, coloquei as gotas de nossa tempestade num copo vazio. Agora eu via que não era transparente, mas era com certeza insípida. Quando eu vou aprender a distinguir as nuvens dos sinais de fumaça? Enquanto tentava entender, me tornei um estrangeiro num mundo do qual nunca fiz parte — a não ser em todas as vezes que interpretei, com maestria, o papel do estranho que estava sempre ao seu lado.

Inspirado na letra da música Strange, de Tori Amos.

domingo, 14 de junho de 2009

Um Amor de Usar

Finalmente, nossos corações destroçados fazem troça do mundo no balanço briseiro de uma nuvem que, presa por dois ganchos às paredes, nos acolhe. Dormimos, e nosso sono é um filme mudo, cuja trilha sonora é somente o som estático da chuva em redor. Quando despertos, todos os matizes da vida resumem-se aos riscos irregularmente simétricos das íris rebrilhando no encontro de nossos olhos, sobreviventes de todas as inundações de lágrimas de uma luta inteira. Não é mais certo nem mais errado. Somos apenas nós despidos dos pesados casacos políticos e capuzes religiosos que usamos para enfrentar um inverno diário de atritos sociais. É o fim do amor emoldurado, ostentado na sala, que ninguém pode pegar, do amor morto tristão-isoldino. É um amor de levar pra casa — amor de usar. É a malha metálica que metemos por cima nossos medos. Um respeito que dispensa pronome de tratamento. Alegria que não precisa de carnaval. Cumplicidade sem crime. Um amor de usar contra as intempéries do tempo que castiga com esquecimento torrencial. Há quem é solitário pra depois dizer que chegou ao fim sozinho. Há quem se cobre com um amor e não precisa ir a lugar nenhum.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Rotina e Anitora

Esposa, filhos, gato e jornal. Tinha tudo que poderia desejar. Não era um conceito abstrato estampado com a tinta preto-hipocrisia em camisetas brancas, mas a paz verdadeira. Beth recortava revistas de moda. O gato ronronava no sofá. As crianças encenavam histórias com caixas de sapato e pedacinhos imaginação. Visto da janela de casa, os dias nublados não passavam de nuvens branquinhas brincando pelo céu ao alcance dos braços luminosos do sol. Enfim, o mundo era somente um detalhe que tentava invadir pela fresta que se abria quando ligava a televisão.

Mas um dia, num relance desinteressado, olhou panoramicamente a sala. O que viu criou um ponto negro na sua alma: Beth recortava revistas de moda. O gato ronronava no sofá. As crianças encenavam histórias… Começou a criar um rancor das crianças repetindo as mesmas histórias, de Beth recortando mil revistas iguais, do gato que dormia no mesmo canto todos os dias nas mesmas horas. O mundo começou a penetrar pelo ponto negro e enraizar-se num ódio. Olhava outras mulheres, chutava o gato, deixava as crianças de lado. O rancor da rotina reverteu-se numa raiva que rosnava contra todos. Mas os dias se sucediam implacavelmente: Beth rasgava revistas de moda. O gato escondia-se embaixo do sofá. As crianças encenavam histórias sobre brigas de casal.

Apareceu então Anitora, uma mulher que não se repetia: nunca ia ao mesmo lugar, não usava duas vezes a mesma roupa, nunca acordava na mesma hora. Ela era o inverso de seu mundo. Quanto mais andava com Anitora, mas odiava o que tinha. Odiou tudo silenciosamente até que não havia mais nada para odiar. Beth recortava anúncios de imóveis. O gato andava perdido pelos telhados. As crianças encenavam caminhões carregando sofás.

Com Anitora, a vida era fascinante, nova. Trouxe-a para si. Acontece que Anitora nunca sentia o mesmo interesse, não dormia duas vezes na mesma cama, não amava duas vezes a mesma pessoa. Ela era só um dia. Com o tempo, Anitora era um fantasma que o assombrava com desprezo e ausência, enquanto ele, sentado, olhava um vazio que recortava revistas de moda, um vazio que ronronava no sofá e um vazio que encenava histórias com sua imaginação.

domingo, 24 de maio de 2009

Por um Dia

Dedicado aos que já passaram um dia incapazes de sair da cama


Enquanto sinto no ouvido o uivo do vento envergando um violino grave, levanto os olhos e penso ver uma lápide. Na verdade, estou deitado na cama há uma infinidade de horas. Nessas horas, fecho os olhos e sinto minhas pupilas se abrindo num país de trevas pacíficas, livres do diariamente. Não ouso dizer que a vida é ruim. Às vezes, ruim é ser todo dia. É um estado de semi-morbidez. Sinto a angústia, minha melhor amiga (já que inseparável), retumbando descompassada no meu peito — o único sinal de que há um coração enraizado neste corpo de terra estéril. Distraído, não percebo fugirem as lágrimas que aprisiono num poço que desce pela minha garganta. Isso basta para que os lençóis lagrimados se transformem um pântano movediço de uma tristeza imbatível, um inimigo cuja maior força é minha fraqueza. Depois de muito lutar, me permito afagar as mágoas nesse sagrado silêncio que me segrega do mundo. Pelo menos, por um dia.


Escrito ao som de I Got to Sleep, de Sia.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Botânica da Civilização

Ouvi falar de um homem em quem descobriram uma árvore brotando no pulmão. Lembrei da história de Francisco. Era-lhe um mundo estranho esse da cidade. Um estranho que entranhava nele um desgosto diário. Para Francisco, o asfalto era sempre mais árido que a caatinga. E era uma aridez diferente: tinha uma fertilidade para plantas de silêncio. Todo dia brotava um ramo de uma planta sem nome que por dentro o sufocava, secando suas palavras. Em trinta anos, os ramos cresceram demais. Tentou adubar seus verbos fazendo cursos de alfabetização, pra ver que fruto davam. Mas sua fala mirrou. Deixou morrerem de sede as interjeições de seus protestos lacônicos. Francisco, então, deu um passo seguro no caminho de volta à sua terra. Lá, sim, é um lugar onde quase sempre falar pouco é significar muito. A cidade, não. Nela, todos falam demais e ninguém se entende. Ela se engasga com seus excessos: enxurradas de palavras, de gestos, de cores, de luzes vomitando aborrecimento para todos os lados. Foi por essas e outras que Francisco pegou a estrada muda que levava à miséria de campos onde só há dois lugares-cor: o céu azul-eterno e o chão vermelho-sacrifício. Já estava cansado daquelas camas moles que enfraquecem o caráter do sujeito e daqueles confortos que — por motivo estranho aos que sofreram dissabores na vida — deixam as pessoas mais ambiciosas de si mesmas. De tudo entendem e nada lhes assombra. Isso não pode ser certo. Um homem tem que estrangular suas palavras ante a violência daquilo que não entende. Pensava essas palavras quando avistou sua casa antiga, onde agora morava apenas o silêncio. As paredes carcomidas pendiam para o cajueiro. Francisco desdobrou a rede, pendurou num galho e deitou-se, sentindo nos pulmões pontadas dos galhos daquela planta estranha que agora tinha nome: saudade. E todo mundo sabe que saudade é feito menino: quando você leva pra casa, ela deixa de aperrear.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Apenas uma Vez

Se fossem só olhares críticos, estaria bom. Se fosse só a placidez torturante e silenciosa dos jantares esfomeados pelo trabalho e o desinteresse pela meia-idade já meio velha de meu corpo.

Se fosse apenas uma noite adúltera a cada três dias... Se fosse. Se fossem apenas xingamentos esporádicos contra minha família, apenas repúdios sinceros contra meus carinhos, apenas uma estupidez embebida de whisky, apenas um bafo sujo de deboche... Se fossem só maus tratos aos meus filhos, flertes com vizinhas vadias. Se fosse só uma lágrima por dia, só um tapa no rosto por semana. Se fossem só covardias de uma alma torpe, picardias de um corpo infame, vilanias de uma mente vã.

Ah... fossem só insultos à minha pessoa triste...

Se fosse apenas uma vez, talvez seu nome fosse apenas uma página de cartório de uma memória esquecida. Talvez sua carne não chorasse agora, aos borbotões, a toda a maldade rubra que coloria seu peito de uma valentia falsa. Talvez esta faca não tivesse vasculhado fundo suas entranhas buscando a coragem inexistente de um homem perverso. Talvez.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Um Trago de Solidão

Do trago travoso que trazes
Debaixo d’adega de tua axila,
Só te resta a embriagada tristeza
E míseras gotas da tua agonia.

A Indiferença é quem te ouve
Com uma atenciosa distância.
O Abandono é quem te abriga
Sob o teto da Desesperança.

Da desgraça eterna que te cerca
Ao menos uma não te imputarão:
Quase nunca te verás sozinha
Na companhia terna da Solidão.

terça-feira, 31 de março de 2009

Quando Ouvi o Douto Astrônomo

Quando Ouvi o Douto Astrônomo
(Tradução de Heber Costa)

A Esman Dias

Quando ouvi o douto astrônomo;
Quando dependuraram-se números e evidências em colunas ante mim;
Quando mostrou-me gráficos e diagramas, para somar, dividir e mensurar;
Quando eu, sentado, ouvi o astrônomo,
na sala donde palestrava sob os louvores;
Quão rápido, inescrutável, fiquei cansado e enfermo;
Até que ascendesse e declinasse, vaguei solitário
no místico sereno ar noturno
e, de tempos em tempos, olhava as estrelas
no mais perfeito silêncio.


When I heard the Learn’d Astronomer
[Walt Whitman (1819–1892), do livro Leaves of Grass]


When I heard the learn’d astronomer;
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me;
When I was shown the charts and the diagrams, to add, divide, and measure them;
When I, sitting, heard the astronomer, where he lectured with much
applause in the lecture-room,
How soon, unaccountable, I became tired and sick;
Till rising and gliding out, I wander’d off by myself,
In the mystical moist night-air, and from time to time,
Look’d up in perfect silence at the stars.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Esperando um Satélite

Olhando para o céu, entendo porque os antigos relutaram tanto em abolir a idéia de que as estrelas giravam em torno da Terra numa esfera fixa de cristal. O céu, não por acaso chamado de firmamento, é aonde eu vou quando estou sem chão. Numa escala humana, ali tudo é certo, tudo está como sempre foi. Os antigos sabiam disso. Para eles, aquilo tinha um nome: certeza. A bolha que impede que o vazio do universo entre em nós. Deitado, deixo-me recobrir por esse manto de certezas e previsibilidade. E espero. Hoje, espero um satélite. Quando a relatividade de tudo que vivemos me bagunça, eu volto para o que é certo. O que sinto quando espero um satélite é um misto de esperança, ansiedade e, por fim, completude. Eu sei. Eu sei que, às 18:45, o Lacrosse4 (uma luzinha tímida) irá emergir no horizonte de minha incerteza, descrever uma trajetória inalterável na abóbada e gradualmente iluminar minhas dúvidas. Quando ele finalmente se apagar, terá levado consigo uma desesperança febril que me acomete nos fins de tarde. Afinal, o que é a esperança senão a certeza de que, a despeito de tudo, uma luz irá surgir no horizonte?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Chapeuzinho Noir

Eram quase dez da noite quando puxei mais uma vez o capuz de meu sobretudo vermelho-vinho e cruzei a rua, abrindo um espaço na cortina de chuva fechada. Eu sabia que tinha de chegar à casa da Vovó logo, e havia algo de estranho no ar. Havia vários dias um caçador tinha desaparecido, e meus instintos diziam que eu estava no caminho certo. Dentro da cestinha, eu levava uma rodela grossa de queijo roquefort e uma pequena garrafa de whisky para a velha. Na cintura, a minha pistola .45 ardia com a frieza cortante de uma vingança. Atravessei a Rua Madison gatunamente e subi pela Avenida Irwin até a casa da Vovó em Chinatown. Um mendigo mastigando memórias amargas marchava mambembe e arfava uma fumaça charutesca, escurecendo ainda mais o nevoeiro que descera sorrateiro e súbito. O lodo fazia o muro rebrilhar quando cheguei ao quarto-e-sala na Rua Hawkings. Tudo estava um escuro da cor do silêncio. Com voz carinhosa, gritei para dentro: “Vovó!”. “Trouxe uma garrafa de Jack Daniels”, disse em seguida para animá-la, na esperança de que seu vício a acordasse. “Entre”, vozeou roucamente de seu sofá. Ao fundo, eu podia ouvir que a TV exibia mais um episódio de Dallas. As imagens intermitentes do aparelho jogavam luzes estroboscópicas sobre seu pijama velho, tornando os poucos movimentos de sua figura corpulenta ainda mais grotescos. Cheguei mais perto e senti um cheiro pútrido vindo de sua direção. “Venha cá, minha filha, estava com saudade.” Algo definitivamente estava errado: sempre soube que a velha não era nenhum ursinho carinhoso. Puxei a roda de queijo da cesta e cheguei mais perto, dizendo: “Vovó, veja só este mofo, cheire aqui…”. Ela abaixou um pouco o lençol e retesou os músculos decrépitos. A desgraçada ia dar o bote. BLAM! Ela rolou para um lado, sem vida, enquanto eu deixava cair o roquefort revelando por trás dele uma pistola fumegante. Com o estrondo da queda, a porta do closet se abriu revelando dois corpos: o caçador desaparecido e um lobo grande cheirando a carniça. Era o fim de mais uma serial killer. A velha era tinhosa, mas não era novidade para mim. “Só mais uma noite em Chinatown”, pensei. Tentei em vão acender meu último cigarro molhado, ouvindo as sirenes que se aproximavam gritando autoridade. Meu trabalho havia terminado… por hoje.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Aritmética do Desapego

“Esses silêncios brutos”, ela dizia, “não agüento mais”. “Quantas vezes meu amor vai tentar beber desses olhos vazios e dessa boca seca antes que desista de deitar no travesseiro solitário que faz companhia ao teu corpo de mármore? Anos… desde que minha juventude abandonou minha beleza para minguar exposta ao medo da solidão. Ainda hoje tu olhas meu corpo com a ternura dos indiferentes.” Eu agitava um cigarro, tentando não começar de soprar de novo aquelas pequenas palavras que sempre davam início ao vendaval. “Diga.” Enquanto fingia pensar formas de dizer uma não-resposta convincente, olhando seu rosto constatei seu cansaço. A infelicidade fatiga. As rugas que jogavam para baixo os cantos de seus lábios eram o resultado incontornável da soma de todas as horas de decepção com os anos de conformismo. Essa é a equação da infelicidade. “Não há nada como o desapego”, soltei absorto. O desapego é a antimatéria da esperança. O que destrói uma vida não é a falta de amor, mas o tempo que se passa acreditando na possibilidade de ele brotar por persistência. A brasa chegava ao fim do cigarro, era hora de ir. Nossas discussões sempre duravam o tempo de um cigarro exposto a uma janela aberta. Dei uma tragada final e deixei cair as últimas cinzas da nossa história. “Já vou.” As cinzas voavam descontroladas, marcando nos lençóis os pontos negros do mapa incompreensível de um casamento naufragado. Quando lhe virei as costas, seus olhos guardavam o abismo das coisas que deram errado e não têm mais volta. Na rua, os gatos viviam, indiferentes, a vida que prosseguia debaixo de um céu de lágrimas.