terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Chapeuzinho Noir

Eram quase dez da noite quando puxei mais uma vez o capuz de meu sobretudo vermelho-vinho e cruzei a rua, abrindo um espaço na cortina de chuva fechada. Eu sabia que tinha de chegar à casa da Vovó logo, e havia algo de estranho no ar. Havia vários dias um caçador tinha desaparecido, e meus instintos diziam que eu estava no caminho certo. Dentro da cestinha, eu levava uma rodela grossa de queijo roquefort e uma pequena garrafa de whisky para a velha. Na cintura, a minha pistola .45 ardia com a frieza cortante de uma vingança. Atravessei a Rua Madison gatunamente e subi pela Avenida Irwin até a casa da Vovó em Chinatown. Um mendigo mastigando memórias amargas marchava mambembe e arfava uma fumaça charutesca, escurecendo ainda mais o nevoeiro que descera sorrateiro e súbito. O lodo fazia o muro rebrilhar quando cheguei ao quarto-e-sala na Rua Hawkings. Tudo estava um escuro da cor do silêncio. Com voz carinhosa, gritei para dentro: “Vovó!”. “Trouxe uma garrafa de Jack Daniels”, disse em seguida para animá-la, na esperança de que seu vício a acordasse. “Entre”, vozeou roucamente de seu sofá. Ao fundo, eu podia ouvir que a TV exibia mais um episódio de Dallas. As imagens intermitentes do aparelho jogavam luzes estroboscópicas sobre seu pijama velho, tornando os poucos movimentos de sua figura corpulenta ainda mais grotescos. Cheguei mais perto e senti um cheiro pútrido vindo de sua direção. “Venha cá, minha filha, estava com saudade.” Algo definitivamente estava errado: sempre soube que a velha não era nenhum ursinho carinhoso. Puxei a roda de queijo da cesta e cheguei mais perto, dizendo: “Vovó, veja só este mofo, cheire aqui…”. Ela abaixou um pouco o lençol e retesou os músculos decrépitos. A desgraçada ia dar o bote. BLAM! Ela rolou para um lado, sem vida, enquanto eu deixava cair o roquefort revelando por trás dele uma pistola fumegante. Com o estrondo da queda, a porta do closet se abriu revelando dois corpos: o caçador desaparecido e um lobo grande cheirando a carniça. Era o fim de mais uma serial killer. A velha era tinhosa, mas não era novidade para mim. “Só mais uma noite em Chinatown”, pensei. Tentei em vão acender meu último cigarro molhado, ouvindo as sirenes que se aproximavam gritando autoridade. Meu trabalho havia terminado… por hoje.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Aritmética do Desapego

“Esses silêncios brutos”, ela dizia, “não agüento mais”. “Quantas vezes meu amor vai tentar beber desses olhos vazios e dessa boca seca antes que desista de deitar no travesseiro solitário que faz companhia ao teu corpo de mármore? Anos… desde que minha juventude abandonou minha beleza para minguar exposta ao medo da solidão. Ainda hoje tu olhas meu corpo com a ternura dos indiferentes.” Eu agitava um cigarro, tentando não começar de soprar de novo aquelas pequenas palavras que sempre davam início ao vendaval. “Diga.” Enquanto fingia pensar formas de dizer uma não-resposta convincente, olhando seu rosto constatei seu cansaço. A infelicidade fatiga. As rugas que jogavam para baixo os cantos de seus lábios eram o resultado incontornável da soma de todas as horas de decepção com os anos de conformismo. Essa é a equação da infelicidade. “Não há nada como o desapego”, soltei absorto. O desapego é a antimatéria da esperança. O que destrói uma vida não é a falta de amor, mas o tempo que se passa acreditando na possibilidade de ele brotar por persistência. A brasa chegava ao fim do cigarro, era hora de ir. Nossas discussões sempre duravam o tempo de um cigarro exposto a uma janela aberta. Dei uma tragada final e deixei cair as últimas cinzas da nossa história. “Já vou.” As cinzas voavam descontroladas, marcando nos lençóis os pontos negros do mapa incompreensível de um casamento naufragado. Quando lhe virei as costas, seus olhos guardavam o abismo das coisas que deram errado e não têm mais volta. Na rua, os gatos viviam, indiferentes, a vida que prosseguia debaixo de um céu de lágrimas.