domingo, 24 de maio de 2009

Por um Dia

Dedicado aos que já passaram um dia incapazes de sair da cama


Enquanto sinto no ouvido o uivo do vento envergando um violino grave, levanto os olhos e penso ver uma lápide. Na verdade, estou deitado na cama há uma infinidade de horas. Nessas horas, fecho os olhos e sinto minhas pupilas se abrindo num país de trevas pacíficas, livres do diariamente. Não ouso dizer que a vida é ruim. Às vezes, ruim é ser todo dia. É um estado de semi-morbidez. Sinto a angústia, minha melhor amiga (já que inseparável), retumbando descompassada no meu peito — o único sinal de que há um coração enraizado neste corpo de terra estéril. Distraído, não percebo fugirem as lágrimas que aprisiono num poço que desce pela minha garganta. Isso basta para que os lençóis lagrimados se transformem um pântano movediço de uma tristeza imbatível, um inimigo cuja maior força é minha fraqueza. Depois de muito lutar, me permito afagar as mágoas nesse sagrado silêncio que me segrega do mundo. Pelo menos, por um dia.


Escrito ao som de I Got to Sleep, de Sia.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Botânica da Civilização

Ouvi falar de um homem em quem descobriram uma árvore brotando no pulmão. Lembrei da história de Francisco. Era-lhe um mundo estranho esse da cidade. Um estranho que entranhava nele um desgosto diário. Para Francisco, o asfalto era sempre mais árido que a caatinga. E era uma aridez diferente: tinha uma fertilidade para plantas de silêncio. Todo dia brotava um ramo de uma planta sem nome que por dentro o sufocava, secando suas palavras. Em trinta anos, os ramos cresceram demais. Tentou adubar seus verbos fazendo cursos de alfabetização, pra ver que fruto davam. Mas sua fala mirrou. Deixou morrerem de sede as interjeições de seus protestos lacônicos. Francisco, então, deu um passo seguro no caminho de volta à sua terra. Lá, sim, é um lugar onde quase sempre falar pouco é significar muito. A cidade, não. Nela, todos falam demais e ninguém se entende. Ela se engasga com seus excessos: enxurradas de palavras, de gestos, de cores, de luzes vomitando aborrecimento para todos os lados. Foi por essas e outras que Francisco pegou a estrada muda que levava à miséria de campos onde só há dois lugares-cor: o céu azul-eterno e o chão vermelho-sacrifício. Já estava cansado daquelas camas moles que enfraquecem o caráter do sujeito e daqueles confortos que — por motivo estranho aos que sofreram dissabores na vida — deixam as pessoas mais ambiciosas de si mesmas. De tudo entendem e nada lhes assombra. Isso não pode ser certo. Um homem tem que estrangular suas palavras ante a violência daquilo que não entende. Pensava essas palavras quando avistou sua casa antiga, onde agora morava apenas o silêncio. As paredes carcomidas pendiam para o cajueiro. Francisco desdobrou a rede, pendurou num galho e deitou-se, sentindo nos pulmões pontadas dos galhos daquela planta estranha que agora tinha nome: saudade. E todo mundo sabe que saudade é feito menino: quando você leva pra casa, ela deixa de aperrear.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Apenas uma Vez

Se fossem só olhares críticos, estaria bom. Se fosse só a placidez torturante e silenciosa dos jantares esfomeados pelo trabalho e o desinteresse pela meia-idade já meio velha de meu corpo.

Se fosse apenas uma noite adúltera a cada três dias... Se fosse. Se fossem apenas xingamentos esporádicos contra minha família, apenas repúdios sinceros contra meus carinhos, apenas uma estupidez embebida de whisky, apenas um bafo sujo de deboche... Se fossem só maus tratos aos meus filhos, flertes com vizinhas vadias. Se fosse só uma lágrima por dia, só um tapa no rosto por semana. Se fossem só covardias de uma alma torpe, picardias de um corpo infame, vilanias de uma mente vã.

Ah... fossem só insultos à minha pessoa triste...

Se fosse apenas uma vez, talvez seu nome fosse apenas uma página de cartório de uma memória esquecida. Talvez sua carne não chorasse agora, aos borbotões, a toda a maldade rubra que coloria seu peito de uma valentia falsa. Talvez esta faca não tivesse vasculhado fundo suas entranhas buscando a coragem inexistente de um homem perverso. Talvez.