quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Beijo

Sentiu uma dormência que despertou seus lábios e fechou seus olhos. Era mais do que um gesto, era uma força. Gravidade irresistível unindo bocas em redor das quais orbitavam cabeças numa coreografia que nunca fora ensaiada, mas tinha a harmonia das danças do vento com as árvores. E quando dedos escalaram até a nuca, arrepios apressados percorreram a pele indo a lugar nenhum levar uma mensagem que não fazia sentido, apenas sensação. Um suor embebido num sentimento sufocante encheu de vida as linhas da mão, e se uma vidente ousasse interromper diria que era uma névoa difusa, mas tão cheia de novidade que só podia ser o presságio passageiro de um futuro mágico. Uma tempestade elétrica se criou, eriçando cabelos e mamilos, e o relâmpago que se seguiu cristalizou na mente um instante que nunca mais se repetiria. Não tinha passado nem futuro: era uma fotografia, é sempre presente. Naquele presente que não passou, naquele exato momento, a brisa descansou de seu eterno despetalar das margaridas. O rio parou diante de um segundo estático como a pedra do silêncio, um divisor de mágoas entre duas vidas. A natureza fez uma reverência calada, um minuto de ciência. No centro daquele turbilhão de cheiros vivos e cores turvas, ele apenas era. Não sabia se era a primeira, a milésima ou a última vez. Não importava: aquele era o beijo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Sobre textos alegres

É difícil encontrar um poeta que escreva bem versos alegres. E isto é o mais próximo que consigo de escrever um texto inspirado na alegria. Ela é um sentimento auto-suficiente, que se expressa somente através de sorrisos involuntários, brisas carinhosas e flores pacíficas. A tristeza é que exige mais, exige pensar, dizer, compreender. Estar triste geralmente é sinônimo ponderar — mesmo que seja sobre a mesma coisa várias e várias vezes. Se houvesse apenas alegria, talvez não existissem poemas, contos, romances. Não haveria tempo pra isso. Estar alegre exige apenas aproveitar instantes infinitos de uma inexplicável e inexprimível vontade de ser sem dizer. Imagens poéticas, por mais belas e agradáveis que sejam, estão embebidas numa melancolia profunda, encravadas na utopia de um mundo bom. É maravilhoso que esse mundo bom exista, mesmo que se apague com o ponto final de um texto.