segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Retrovisor

Nada mais curioso que o retrovisor. Parado num sinal, lanço o olhar automático que todo motorista conhece ao espelho central e sempre me aparece ali uma história, uma cena ou, pelo menos, um esquete. De dentro da nossa bolha automotiva, é o buraco da fechadura na porta do mundo. Quase sempre a cena é de algum tipo de asseio diário. A privacidade de um carro é como a intimidade de um banheiro. Sinal fechado, é hora de checar as auto-peças: olhar os pêlos do nariz, procurar aquele incômodo no dente, limpar o ouvido, antes de seguir pra vida. Mas nem só do cotidiano indiscreto vive o retrovisor. Nele estão guardadas acaloradas discussões marido-mulher, amigos semibêbados, taxistas entediados. Quando meu rádio está ligado, muitas vezes um casal de namorados, emoldurados pela voz de mogno de Elvis com cantos em bronze de Sinatra, beijam seu mais tenro e oportuno beijo. Se escuto o noticiário, o retrovisor é como uma TV estrangeira, com uma dublagem estranha das conversas do carro de trás. Melhor ainda são as crianças: sempre tramando alguma trela no banco traseiro, enfiando sua curiosidade em todas as bolsas e papéis que lhes fazem companhia. Às vezes, um cachorrinho maroto, de cara no vidro, tenta entender o show de luzes e cores das pessoas que não se importam. Estou vagando nessas divagações quando brilha o verde e meus olhos displicentes e autômatos deixam para trás a janela da vida inteira.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Delírios amorosos

Te vi pela primeira vez num verão vil em teus olhos primaveris. Era só uma tarde suja de um dia torto, mas tudo ficava certo nas órbitas precisas de teus olhos, circundando firmes minhas intenções. Teus cabelos ondulavam lavados por longas lágrimas antigas, longas línguas sofridas, lambuzando teus lábios de vento, corda que me enforcava a cada centímetro. Se só uma vez eu fosse maior que teus desejos, que teus olhos, fugiria às tuas inocências tristes e teus olhos pedintes. Mas não fui, nem sou. Sou apenas uma alma triste, um soul cheio de blues. Sou dependente químico de tua sinceridade inebriante — um vício que até hoje me oxigena e me assola, solamente hoje. Um beijo roubado foi crime, delito e cadeia de minhas prisões, pressões que me prenderam. E a epiderme de meus maiores medos descama, descamba louca nas águas que derramaste de meu âmago, teu amado amigo, macabro vidro que te refrata, que contém o que contam a cada nova história, a cada novo dia, a cada nova vez que te tenho nos meus quadros, pintura rústica de tempos que nunca foram.