segunda-feira, 22 de junho de 2009

O Estranho

Depois de tantos anos, achei que já sabia. Num mundo que fazia sentido, as previsões do tempo estavam sempre certas. Achei que podia ler a mímica das nuvens, a língua de sinais de um céu que não tinha mistérios. Não via que a sombra estava sobre mim, e eu sonhambulando. Talvez eu tenha visto, mas pensei que havia amor suficiente em mim para conversar com sua mudez. Metida num silêncio escuro, você mente: “vamos superar isso”. Então, provei seus amigos, seus gostos, suas músicas, mas — por excesso de peso ou desprezo — não caíam bem: sufocavam meu pescoço ou apertavam meus braços, justas demais. Mesmo acertando em todos os presentes de aniversário, nunca soube o que você queria. Achei mesmo que podia prever a chuva nos seus olhos nublados. Quando o tempo esfriou e você não voltou pra casa, coloquei as gotas de nossa tempestade num copo vazio. Agora eu via que não era transparente, mas era com certeza insípida. Quando eu vou aprender a distinguir as nuvens dos sinais de fumaça? Enquanto tentava entender, me tornei um estrangeiro num mundo do qual nunca fiz parte — a não ser em todas as vezes que interpretei, com maestria, o papel do estranho que estava sempre ao seu lado.

Inspirado na letra da música Strange, de Tori Amos.

domingo, 14 de junho de 2009

Um Amor de Usar

Finalmente, nossos corações destroçados fazem troça do mundo no balanço briseiro de uma nuvem que, presa por dois ganchos às paredes, nos acolhe. Dormimos, e nosso sono é um filme mudo, cuja trilha sonora é somente o som estático da chuva em redor. Quando despertos, todos os matizes da vida resumem-se aos riscos irregularmente simétricos das íris rebrilhando no encontro de nossos olhos, sobreviventes de todas as inundações de lágrimas de uma luta inteira. Não é mais certo nem mais errado. Somos apenas nós despidos dos pesados casacos políticos e capuzes religiosos que usamos para enfrentar um inverno diário de atritos sociais. É o fim do amor emoldurado, ostentado na sala, que ninguém pode pegar, do amor morto tristão-isoldino. É um amor de levar pra casa — amor de usar. É a malha metálica que metemos por cima nossos medos. Um respeito que dispensa pronome de tratamento. Alegria que não precisa de carnaval. Cumplicidade sem crime. Um amor de usar contra as intempéries do tempo que castiga com esquecimento torrencial. Há quem é solitário pra depois dizer que chegou ao fim sozinho. Há quem se cobre com um amor e não precisa ir a lugar nenhum.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Rotina e Anitora

Esposa, filhos, gato e jornal. Tinha tudo que poderia desejar. Não era um conceito abstrato estampado com a tinta preto-hipocrisia em camisetas brancas, mas a paz verdadeira. Beth recortava revistas de moda. O gato ronronava no sofá. As crianças encenavam histórias com caixas de sapato e pedacinhos imaginação. Visto da janela de casa, os dias nublados não passavam de nuvens branquinhas brincando pelo céu ao alcance dos braços luminosos do sol. Enfim, o mundo era somente um detalhe que tentava invadir pela fresta que se abria quando ligava a televisão.

Mas um dia, num relance desinteressado, olhou panoramicamente a sala. O que viu criou um ponto negro na sua alma: Beth recortava revistas de moda. O gato ronronava no sofá. As crianças encenavam histórias… Começou a criar um rancor das crianças repetindo as mesmas histórias, de Beth recortando mil revistas iguais, do gato que dormia no mesmo canto todos os dias nas mesmas horas. O mundo começou a penetrar pelo ponto negro e enraizar-se num ódio. Olhava outras mulheres, chutava o gato, deixava as crianças de lado. O rancor da rotina reverteu-se numa raiva que rosnava contra todos. Mas os dias se sucediam implacavelmente: Beth rasgava revistas de moda. O gato escondia-se embaixo do sofá. As crianças encenavam histórias sobre brigas de casal.

Apareceu então Anitora, uma mulher que não se repetia: nunca ia ao mesmo lugar, não usava duas vezes a mesma roupa, nunca acordava na mesma hora. Ela era o inverso de seu mundo. Quanto mais andava com Anitora, mas odiava o que tinha. Odiou tudo silenciosamente até que não havia mais nada para odiar. Beth recortava anúncios de imóveis. O gato andava perdido pelos telhados. As crianças encenavam caminhões carregando sofás.

Com Anitora, a vida era fascinante, nova. Trouxe-a para si. Acontece que Anitora nunca sentia o mesmo interesse, não dormia duas vezes na mesma cama, não amava duas vezes a mesma pessoa. Ela era só um dia. Com o tempo, Anitora era um fantasma que o assombrava com desprezo e ausência, enquanto ele, sentado, olhava um vazio que recortava revistas de moda, um vazio que ronronava no sofá e um vazio que encenava histórias com sua imaginação.