sábado, 19 de setembro de 2009

O Dia de São Valentim

Neste leito frio e passageiro que corre inevitável para o mar onde os males se esquecem, deitei o barco de minhas esperanças e não mais o vi. Por seus olhos, discurso, espada fui mortalmente trespassada, e meu primeiro rubro amor dormiu em lençóis de realeza. Oh, minha doce, doce ingenuidade! Foste sacrifício abraaônico, carneiro imaculado que tomou lugar de um amor sem bênção. Meu príncipe de perfume gentil, hoje me sopra somente um desprezo inodoro. Prometeu-me a primeira flor da primavera, prazeres sem palavras; mas nos campos encontrei só pétalas apáticas de um amor que mal-me-quer. Oh, amor infeliz, cuja semente pousou em terra estéril somente para ser sufocado pela loucura daninha. Ele se foi, se foi e não mais voltou. Só me resta segui-lo pela estrada cristalina que começa no poente e finda no mar sem fim. E as ervas e flores malditas serão a coroa bastarda do meu reino de um só dia — pois deitei-me e fui para sempre rainha no dia de São Valentim.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A Não-Perspectiva

Se os limites do corpo humano fossem fronteiras que tolhem também a alma, não desejaríamos mais do que querem os cães e os coelhos. O espírito humano é feito de matéria etérea inquebrável, forjado na chama da vontade e resfriado no poço da razão. Do fundo de sua pequenez, o homem dobra a natureza contra ela mesma: no calor, usa a água; no frio, usa o fogo. Embora tenha arroubos de grandiosidade e demonstre sua força, na maior parte do tempo a Terra se curva aos desejos do mamífero sem pêlos. Não importa quão miserável a situação, o humano subsistirá como puder. Mas qual a fraqueza desse ser tão poderoso? A resposta é uma tautologia: a fraqueza do homem é o homem. Não é o homem contra o homem, e sim o homem contra si mesmo. O homo sapiens sapiens só sobrevive enquanto enxerga um futuro — capacidade que foi concedida a ele apenas. Isso é o que explica o fato de que homens e mulheres torturados, famintos, derrotados possam nascer vivos num novo dia. Do mesmo modo, por antítese, explica porque pessoas saudáveis, ricas, vencedoras acabam desistindo da vida e tomando a amarga pílula que sai do cano de uma arma. Ante a perspectiva de um não-futuro, valores e princípios acabam jogados ao vento, amores são desfeitos, riquezas são desperdiçadas, vidas tomam rumos inesperados. Enfim, não importa quão fundo seja o poço: o veneno do homem não é a desgraça, é a não-perspectiva.