terça-feira, 23 de março de 2010

Pequenos Deuses

Uma mãe olha profundamente. Na outra ponta desse olhar, uma criança descansa plácida, como sempre fazia após um dia inteiro de cansativas travessias entre mundos imaginários. A mão da mulher repousa sobre o peito da menininha, eletrificando a ligação mística e ancestral dos animais com seus filhotes. Fecha os olhos e sente o cheiro de lírio do ambiente potencializado pelo lítio que corre nos seus humores. Os cabelinhos viçosos resfolegam energia, saúde e felicidade. A mãe tenta entender como aquele pequeno ser, com todos os seus desmandos e malcriações, faz com que sua vida faça sentido. Que mistério carregam as crianças em sua disposição infinita para a vida? Essa vida que se esfumaça ao passar dos anos, no processo de cauterização do corpo. A velhice, não há dúvida, é o processo de imortalização do humano: a solidificação de suas articulações, ressecamento dos músculos… é transformação do homem em estátua. Depois, essa rocha se desagrega em pedaços cada vez menores até que ele viva para sempre no nível atômico — o pó. Mas a menininha era o oposto disso, suas mãos mínimas tinham o poder de criar castelos enormes de areia ou destruir civilizações inteiras de formigas. Gatos e cachorros estão sempre aturdidos diante da intrepidez infantil, sem reação, tentando compreender a coragem de agarrá-los como a pelúcias inofensivas. Suas pernas são tornados em miniatura na devastação das plantações de margaridas. A criança é mesmo um pequeno deus das coisas da terra. Essa divindade telúrica se despedaça, porém, diante da água: o elemento vital desbarata seus poderes, manipulando-a qual peão inerte nos dedos ágeis das ondas, nos braços fortes das correntezas. Para esses pequenos deuses, a água é a morte. Enquanto pensava nisso, a mãe sente um suave toque no ombro. Era hora de ir. Sem derramar uma lágrima, num ressequido protesto contra os mares do mundo, ela se debruça sobre aquele pequeno corpo para dar-lhe seu derradeiro e mais tenro beijo de boa-noite.

terça-feira, 2 de março de 2010

Um aviador irlandês antevê sua morte

William Butler Yeats (1865-1939) [Tradução: Heber Costa]

Sei que encontrarei meu destino
Por entre nuvens, em lugar incerto.
Aqueles que defendo, não estimo;
Aqueles que combato, não detesto.
Minha pátria é Kiltartan Cross*,
Seu pobre, meu compatriota;
Desfecho algum lhe será atroz
Ou trará felicidade digna de nota.
Nem dever nem lei me fizeram combater
Nem políticos, nem multidão clamorosa,
Foi apenas um solitário impulso de prazer
Que me levou às nuvens em polvorosa.
Tenho em mente tudo isto ponderado:
O tempo porvir é fôlego desperdiçado à sorte,
E desperdício também o tempo passado.
Então, no equilíbrio desta vida, esta morte.


An Irish airman foresees his death

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan’s poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.
Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public man, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

* Local histórico em Kiltartan (Cenél Áeda na hEchtge, em gaélico), oeste da Irlanda, onde viveu Yeats, que tomou parte no resgate da cultura celta.