terça-feira, 4 de maio de 2010

Amor Impuro

Cada vez que beijava aqueles cabelinhos ingênuos e fechava silenciosamente a porta do quarto, eu levava minhas esperanças mirradas de uma noite bem-sucedida. Deixando teu sono aos cuidados de uma prece corrida, eu seguia os passos do destino sob as bênçãos dos santos que ainda restassem na ala celeste dos piedosos. Não me julgue tão friamente: nem santo nem anjo tomaria meu lugar. Nem por um minuto, porém, minha mente deixou de estar ao teu lado, cobrindo teus medos e consolando teu choro. É que a rua foi minha mãe, e a solidão minha única companheira até que, por um acidente sem nome, tua alma nascesse dentro de mim trazendo uma faísca de vida, um sentido para alimentar meu corpo vazio e viver outro dia. Ao menos isso eu te devia, e pagaria com sangue e sofrimento. Agora que me vou, peço que não tenhas vergonha. Mas também não digas ao mundo da imundície dos que consumiram minhas entranhas nem digas como rompi as finas cordas que seguravam sobre os ares a moral e os bons costumes — inalcançáveis a todos, mas cuja propriedade é reclamada pelos travestidos de pureza. São eles que podem te machucar, plantando palavras que resultam estéreis no arado bruto da sobrevivência: honra, decência, dignidade. Depois que revelares quem sempre fui, estarás sozinho, à mercê dos imensos braços do abandono. Não o faça. Eles jamais admitirão, mas sabem que, no preto dos quartos, o certo e o errado vestem as mesmas roupas e sujam-se de suor e sêmen, misturando verdades negras e mentiras claras, somente para no outro dia, de camisas brancas bem passadas, beijarem despedidas tenras com suas bocas lascivas antes de seguirem para o trabalho. Nesse carneval de corpos em preto-e-branco, todas as noites eu fui arlequina sem máscara, solidão nua no baile dos mascarados. Longe de mim mesma, infinitas vezes assisti à última cena daquela pantomima carnal, em que meu coração humilhado rejeitava — com uma mão pedinte estendida, implorando — cada cédula escarrada por aquele desprezo que poucos minutos antes foi cúmplice no gozo. Era assim até que o dia ameaçasse a noite com revelações, e ela ia embora, levando os covardes na sua fuga. A essa hora, enquanto os sinos badalavam a condenação das seis, eu arrumava o atoalhado surrado e colocava teu prato na mesa bem servida por meu amor impuro, mas verdadeiro.