sábado, 30 de janeiro de 2010

Beraldo (ou Contra o Romantismo)

Abelardo era um desses velhos que parecem com todos os velhos: lento, baixo e magro, quase franzino, isso mesmo, de pele franzindo eternamente a testa com um abuso do mundo de hoje. Reclamava das mesmas coisas, de como fazia frio num calorão, que a televisão estava sempre baixa nesse volume máximo. Enfim, era um idoso feliz e resmungão, ou seja, comum. Mas ele tinha alguma coisa de especial… mentira, não tinha nada. Era comum mesmo. Seria mais fácil contar essa história se ele fosse um ex-astronauta, lutador de boxe aposentado, mas ele não era. A vida toda foi coveiro. Não, ele não tinha histórias de fantasma pra contar. Em 45 anos de profissão, nunca ouviu um uivo estranho nem viu vulto dando volta no cemitério. Fazer o quê. Seus olhos não brilhavam de uma juventude incendiária, e seu espírito não era de criança. A saúde também não era lá essas coisas: uma tosse escapava aqui, uma dor nas costas acolá. Não namorou muito quando jovem, aliás não era muito bonito… nem feio. Com isso, nunca teve fama de garanhão quando garoto, e já havia uns bons (ou maus) quinze anos que não sabia nada de sexo. Beraldo, como o chamavam, trocando as letras, não tinha filhos. Só um gato caolho, apelidado Tirano. Beraldo, meus caros, era isso mesmo: uma coleção de nãos. Mas houve um dia, há muito tempo, ele ganhou um sim que coloriu seus nãos. Lenira. Um amor manso, que andava de mãos dadas pelo parque e comia bolinhos de sossego assistindo TV. Para ela, Beraldo boxeou contra Ali num ringue em plena lua (e ganhou!). Divertia-a com os causos de cemitério que contava, repetidamente, nos jantares sem luz de velas, sem rosas — cozido de carne com legumes era seu favorito. Suas pequenas mentiras ingênuas que lhe pescavam sorrisos, seus braços fracos que trabalhavam forte, seus olhos silenciosos: Beraldo não era especial, mas Lenira o amou por toda a vida. E a vida, leitores, não é um mero romance.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Átomo


Às vezes, quando deito à noite, recebo uma visita furtiva. É uma solidão errante que passava na minha porta e decidiu entrar. Uma urticária que uiva muda, moendo amiúde minha vontade de ser. Em noites como esta, com pesadelos de solidão acordada, acabo sempre vomitando preto num papel — não por vaidade, mas por uma agonia de dormir. Descobrir que se está, na verdade, sozinho é como estar exilado de todos, expatriado dos seus, como morar longe de si. No diametralmente oposto ao divino, estou eu — última instância do mundo. O quarto é só a cela oca, prisão e celeiro de pensamentos que turbilham afogadiços, em ondas acéfalas de consciência. Suas águas turbas se curvam sobre mim, e as engulo num soluço seco: é a revelação última de que, para além das moléculas de pessoas, há apenas eu, átomo.