quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Órion

Diz que coube à deusa lunar Diana, ainda no auge da juventude eterna, conduzir os caçadores do Olimpo. Seu bando se movia ao seu olhar, e suas palavras tinham o peso da prata. A vida de cinzas e sangue lhe extirpara todas as gentilezas e lhe fizera seca. E assim foi. Decorridas muitas das auroras infinitas, sua autoridade inquebrantável balançou do alto de sua morada, donde ameaçava despencar: dizia-se à boca miúda que, dentre todos, havia um preferido de Diana. Decerto suas flechas relampeariam por qualquer que sugerisse tal coisa. Mas a fúria era espelho da verdade, pois a irmã de Apolo, caçadora fria, sentia-se arder quando Órion se aproximava dela. Nesses momentos, de seta a alvo, a deusa tremia, alvejada pelo mais ligeiro olhar do gigante cujos pés sem esforço tocavam o fundo do oceano. Seu estado de convalescência piorava quando ele ia embora, levando consigo seu corpo tépido e deixando uma ausência que nenhum deus preenchia. Mas ele voltava, e a deusa de modos incautos pisava leve quando lhe dava a mão, e caçavam juntos outono adentro, entre sorrisos e oliveiras. Manipulavam suas habilidades de caça, um tentando entregar ao outro a vitória indesejada sobre seu amado. Sim, amavam-se. Diana o amava tanto que pediu a Vulcano que forjasse para Órion um cinturão com três pedras que fulguravam diante o brilho do sol, para que ela sempre soubesse onde ele estava. A vida corria bem, mas os deuses, à feição dos humanos, têm em si algo que lhes consome, uma insatisfação eterna, uma propensão ao conflito — e com Apolo não era diferente. O dono da carruagem solar sentia-se corroer dentro de suas vestes divinais, inflamado por uma mandrágora que medrava no seu peito com a feição do ciúme, mas as raízes robustas da inveja. Certo dia, quando Órion partiu em sua caminhada marítima, Apolo, vendo o caçador submerso até a altura do pescoço já quase ao pé do horizonte, correu a esconder o sol no crepúsculo. Voltando ao cume do Olimpo, o deus do sol provocou Diana, dizendo: “Dizem que teus hábitos amorosos têm diminuído teus talentos. Vês aquela bolota escura no fim do oceano? Hoje tenho dúvidas de que consigas acertá-la”. Os deuses são vitimados por muitos sentimentos, mas um deles reina acima de todos. A deusa da lua então puxou do alforje uma seta cheia da mais pura vaidade e lançou-a com toda sua força. Em segundos, a flecha trespassou a cabeça mortal do filho de Netuno. As águas tornaram-se mais salgadas pelas lágrimas das ninfas, peixes morreram, algas secaram. Cheio do mais profundo respeito, o mar carregou o corpo de Órion até às margens, onde águas-vivas o velaram multiplicando o luar. Ao longe, Diana o viu. Correu até ele e lhe pôs a cabeça no colo. De um olho, saía uma seta de ponta rubra. A vida escorreu pálida, e sua imagem começou a esfacelar-se na areia. Tomada de desespero pela tragédia e para que não o perdesse de todo, ela pediu a Júpiter que o guardasse entre as estrelas, onde desde então, com seu cinturão incrustado, Órion campeia.