segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Ponte do Riacho da Coruja

Ambrose Bierce [1842-1914] (tradução de Heber Costa)

Parte I

Um homem de pé numa ponte férrea no norte do Alabama, olhando para as rápidas águas muitos metros abaixo. Mãos para trás, punhos atados e uma corda bem justa em redor do pescoço. As tábuas soltas sobre os dormentes, onde estavam deitados os trilhos, serviam de apoio para ele e seus executores — dois soldados da União comandados por um sargento que parecia ter sido um xerife na vida civil. Pouco atrás, na mesma plataforma, um capitão. Havia uma sentinela parada, qual um adorno, em cada cabeça da ponte. Não se via ninguém mais na ferrovia que adentrava uma floresta e fazia uma curva para além da vista. Na outra margem, ladeados por rifles e o focinho protuberante de um canhão, estavam os espectadores — uma companhia de infantaria em linha com um tenente à direita apoiando as duas mãos sobre a espada espetada no chão. À exceção da comitiva no centro da ponte, nenhum homem se movia: todos os olhares petreamente voltados para a cena. O capitão restava silente, sem fazer qualquer sinal. A morte é um dignitário que, quando anunciado previamente, deve ser recebido com manifestações formais de respeito mesmo por aqueles que já lhe são muito familiares.

A julgar por suas vestes, o homem à beira do enforcamento parecia um civil fazendeiro. Suas feições bem delineadas — nariz reto, boca firme, bigode e um cavanhaque pontudo, cabeleira escura e longa penteada para trás — e uma expressão serena dificilmente esperada no rosto de alguém com a corda no pescoço diziam claramente que esse não era um assassino qualquer. A forca do exército, no entanto, não faz acepção entre cavalheiros e outros tipos de pessoas. Quebrando a rigidez, os soldados deram um passo ao lado e retiraram duas tábuas; o sargento se deslocou para as costas do capitão, que por sua vez saiu do apoio. Com essa coreografia, o sargento e o condenado ficaram nas pontas opostas da última tábua. Com um movimento do militar, o homem cairia por entre as vigas da ponte. Como não lhe puseram venda ou capuz, sua mente vagava pelo cenário abaixo: a água, tocada em ouro pelo sol, o nevoeiro que cobria as margens rio abaixo, os soldados, um galho flutuando — tudo o distraía. Fechou os olhos para fixar em seus últimos pensamentos a imagem da esposa e dos filhos. Então, trespassando a lembrança de seus entes queridos, veio o som agudo de uma percussão metálica, perto ou imensuravelmente longe, regular, lento, como badaladas fúnebres. Esperava cada batida com impaciência e, não sabia por quê, ansiedade. O silêncio crescia a cada intervalo, demarcando um espaço enlouquecedor entre os sons pontiagudos e perfurantes. Era seu relógio de pulso. Abrindo os olhos, em sua mente faiscaram pensamentos, transcritos aqui como “se livrar as mãos, posso tirar o laço e mergulhar na corrente, evitando as balas, entrar no bosque e fugir para a minha casa, que está fora do alcance deles, graças a Deus”. Enquanto relampeavam essas ideias, o capitão acenou com a cabeça para o sargento. O sargento deu um passo à direita.

Parte II

Peyton Farquhar era um respeitado fazendeiro sulista, dono de escravos e devotado à causa da Secessão. Ele não pôde servir ao exército confederado, pelo que lastimava, mas acreditava que oportunidade de um grande feito se apresentaria para todos no decorrer da guerra. Certa tarde, enquanto Peyton e a esposa descansavam num banco à entrada de sua propriedade, um soldado vestido um uniforme cinzento apareceu pedindo água. Enquanto a senhora corria com boa vontade para pegar a água, Peyton perguntou ao recruta avidamente quais as novas. “Os ianques estão reparando as linhas férreas”, disse o homem. “Chegaram ao Riacho da Coruja, a uns 50 quilômetros daqui, e reconstruíram a ponte. O comandante decretou que qualquer civil pego em sabotagem será sumariamente enforcado.” Peyton perguntou se havia segurança. “Só um posto improvisado no meio do caminho”, respondeu. “Suponha que um homem — civil e estudioso do enforcamento — conseguisse passar pelo posto e pelas sentinelas, o que ele poderia fazer?”, indagou Peyton com um sorriso. “Há um mês, quando passei lá”, disse o soldado refletindo, “havia uma pilha de galhos acumulados pelas corredeiras que hoje devem estar secos e queimariam como carvão”. A senhora chegou com a água, o soldado agradeceu com cerimônia e se foi. Ao anoitecer, o soldado passou pela fazenda, fazendo o caminho inverso. Não era um sulista, era um batedor do exército da União.

Parte III

Quando caiu por entre as madeiras da ponte, Peyton perdeu a consciência, como se já estivesse morto. Acordou desse estado — séculos depois, pareceu-lhe — por conta de uma dor sufocante e uma pressão na garganta. Agonias afiadas e penetrantes eram disparadas de seu pescoço para todas as fibras de seu corpo, irradiando-se com uma rapidez inconcebível, como correntes de fogo pulsante aquecendo seu corpo a temperaturas intoleráveis. Essas sensações não tinham a companhia de pensamentos. A parte intelectual de sua natureza tinha sido erradicada: ele só podia sentir — e sentir era um tormento. Ele era o coração flamejante de uma nuvem luminosa, sem substância material, oscilando em arcos impensáveis como um pêndulo enorme. Subitamente, a luz se lançou para cima com um estrondo e um pavor rugindo nos seus ouvidos… então, tudo ficou frio e escuro. O poder do raciocínio retornou; sabia que a corda tinha partido e ele caíra no rio. O laço sufocava seu pescoço, mas mantinha a água fora dos pulmões. Abriu os olhos e viu um brilho se esvaindo. Estava afundando. Morrer enforcado no fundo do rio! — a ideia lhe pareceu hilária. Viu, então, a luz ficando mais forte, agora ele estava subindo. Num esforço inconsciente e sobre-humano, ele livrou as mãos e arrebentou o laço. Seu pescoço doía terrivelmente; seu cérebro pegando fogo; e seu coração deu um grande salto tentando sair pela boca. Autômatos, seus braços e pernas batiam vigorosamente em direção à superfície. Quando a cabeça rompeu a superfície da água, seu peito se expandiu convulsivamente, recepcionando a golfada de ar com um grito agudo.

Todos os seus sentidos físicos estavam num alerta que lhe fazia perceber tudo ao seu redor de uma forma nunca experimentada por ele. Olhou para a margem e viu cada árvore, e cada folha nessas árvores e cada veia das folhas — viu até os insetos nelas: gafanhotos, moscas brilhosas, aranhas cinzentas. Percebeu as cores prismáticas de cada gota de orvalho em milhões de hastes de grama. O zunido dos mosquitos que dançavam nas poças da margem, o bater das asas das libélulas, as pancadas das pernas das aranhas aquáticas — tudo isso compunha uma música audível. A corrente fez um rodopio, e ele viu a silhueta dos soldados na ponte recortados contra o céu azul: eles apontavam e gesticulavam, eram movimentos grotescos e formas gigantescas. Então pequenas nuvens azuis começaram a emergir dos soldados, e zumbidos duros atingiam a água ao redor dele. “Depois disso, eu não vou levar um tiro; não é justo”, pensou. Peyton mergulhou o mais fundo possível. Tentando voltar à superfície, encontrava pedacinhos brilhantes de metal afundando lentamente — alguns o tocavam na face e nas mãos no caminho inverso ao seu.

Emergiu de novo, buscando fôlego, e notou que tinha ficado muito tempo submerso: estava bem mais distante da ponte, mais próximo da segurança. Um apito alto, diminuendo, terminou por morrer numa explosão que levantou uma parede de água contra ele. O canhão havia entrado no jogo. Enquanto pensava em como escapar, sentiu-se rodar e rodar, vendo a margem, a floresta, a ponte, os homens, a margem, a floresta… tudo se amalgamando em faixas horizontais coloridas e borradas. Sem que pressentisse, foi jogado nos seixos da margem esquerda, alcançando algumas rochas que se projetavam. A parada súbita e o atrito de suas mãos o restauraram, e sentiu-se chorando de alegria. Tateou até que seus dedos finalmente se enterraram na areia. Jogava punhados dela sobre si mesmo, como diamantes, rubis, esmeraldas. As árvores da margem estavam separadas por espaços regulares, como num jardim. Uma estranha luz rosada passava por entre elas, e o vento tocou nelas a música das harpas eólicas. Com um disparo aleatório de despedida, o canhão atingiu os ramos mais altos, acordando-o de seus devaneios. Ele ficou de pé e subiu correndo a margem íngreme, lançando-se floresta adentro.

Guiado pelo sol, Peyton percorreu o dia inteiro a mata interminável, cansado, faminto, mas impulsionado pela lembrança de sua mulher e filhos. Não sabia que vivia numa região tão isolada e selvagem. Havia algo de sobrenatural nessa revelação. Acabou achando uma estrada larga, que parecia nunca ter sido usada. Os corpos escuros das árvores ladeavam o caminho como paredes retas até o horizonte e de cada lado vinham ruídos bizarros, entre os quais — uma vez, duas e mais outra vez — ele ouviu sussurros em uma língua desconhecida. No céu, grandes estrelas douradas pouco familiares agrupavam-se em constelações estranhas, dispostas de uma forma que denunciava um significado secreto e maligno, tinha certeza disso.

Levantou a mão e sentiu que seu pescoço estava doendo e intumescido; não podia mais fechar os olhos, de tão congestionados; sua língua estava inchada de sede. Mas quão suavemente a turfa havia acarpetado a aquela avenida não trafegada — ele não sentia mais a estrada sob seus pés! Sem dúvida, a despeito do sofrimento, ele havia adormecido enquanto caminhava, pois agora ele via outra cena, talvez meramente recobrada de um delírio: estava no portão de sua casa. Tudo estava do jeito que deixara. Uma manhã brilhante e bela; ele devia ter viajado a noite inteira. Abriu o portão e caminhou. Nos degraus ao pé da varanda, está sua esposa, bela e doce e perfumada, com um sorriso de alegria inefável e uma postura graciosa. Ah, como ela é linda! Ele vai em sua direção, com os braços estendidos, e está prestes a abraçá-la quando sente um violento golpe na nuca; uma luz ofuscante o envolve com um som que parece o impacto do canhão — então tudo é escuridão e silêncio!

Peyton Farquhar estava morto. Seu corpo, com o pescoço quebrado, balançava suavemente de um lado para o outro entre os dormentes da ponte do Riacho da Coruja.