quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Menina no Sinal

Uma menininha no sinal. Os cabelos crispados crescendo eletricamente começam num castanho imaculado e terminam em pontas de cores corrompidas pelo esmaecimento do sol-a-sol. A alguns metros, com um olhar tirânico destroçado pela vida, resta sentada à sombra sua imagem futura, aquela que a pariu no passado e agora vigia o seu presente. Seu destino é regido por uma lógica distinta das associações comuns: o verde significa espera, e o vermelho é a cor da esperança. Vermelho! Corpo magrinho, ela perambula entre os veículos com uma caixa de mentos. A menininha fede. Olhares jogam contra ela um desprezo desinfetante. Verde! Brincadeira involuntária de estátua na beira da calçada. A carinha tem vestígios da sopa aguada de ontem que as moscas disputam sofregamente. Olha para si. A camiseta-pano-de-chão sobra na sua silhueta: é o mais próximo que ela vai chegar de um vestido. Mas ela não pensa nisso. Puxando pelos lados, faz uma saia de pastoril. Seu corpo gira, pezinhos espalmados no chão. Dá pequenos pulos para não expor o sexo que lhe foi apresentado tão cedo, à revelia de sua compreensão. Fecha os olhos sob um sol de holofote e deixa-se rodopiar ao som bruto dos carros que passam. Vermelho! A entidade que se denomina mãe, embora quase imaterna, solta um grunhido. No susto, ela corre de volta para os carros, ofertando seu precário futuro aos condutores que a ignoram. Uma vez perdida, alguém sorri para ela e lhe estende uma moeda. A menininha gosta das prateadas mais do que das douradas, embora saiba que estas compram mais. Seu meio-sorriso denuncia a satisfação que escapa por entre os poucos dentes. Verde! A mão lhe toma a moeda, mas ela não fica mais triste como antes. Coloca o dedo na boca e chupa o salgado da fuligem e do suor. Limpa na camisa enquanto procura com os olhos secos pelo papelão em que ela deita por dez minutos na hora do almoço. Queria mesmo era ser uma criança pobre de novela, que usa roupa limpa, dorme numa cama só dela e tem uma mãe que faz carinho. Vermelho! Corre por entre os carros saltitando para não queimar os pés no asfalto fumegante. Ela sabe que é quase hora do almoço pela quentura do chão. Viu um pão na sacola verde... será para ela? Verde! A menininha não gosta de dormir no carpete-que-virou-chão enquanto a mãe fica gemendo com o homem. Não tem cortina. Ela vira para o lado oposto e cobre os ouvidos sem sucesso. Também não gosta quando o homem pega nela. Parece querer achar curvas naquele corpo reto. Sente uma angústia, como quem esconde um malfeito. Tem medo de apanhar da mãe. Vermelho! Ela corre — tropeça e derruba na lama preta a mercadoria... o papel da embalagem encharca rápido, ficando negro como o medo que lhe percorre a espinha. Enfia a mão na sarjeta, no desespero de não perder nada, e vai jogando o lodo mentolado na camisa que segura à guisa de bolso. Levanta e vai na direção da mãe com a resignação dos condenados. Antes que diga qualquer palavra, leva dois tapas firmes na cara engatados com meia-dúzia de palavrões. Mas uma coisa mais dolorosa lhe vem à mente: não vai ter almoço hoje. O formigamento do rosto faz com que ela nem sinta as lágrimas descendo sem freios. Verde! Os carros começam a passar em velocidade. A menininha corre mais uma última vez e joga-se na frente. Não, não foi isso que aconteceu. Vermelho! Ela pega as balinhas que conseguiu salvar, limpa com a camisa, coloca na caixa e, de novo, vai oferecer ao desprezo.

3 comentários:

Unknown disse...

Lindo conto, triste conto. Muita sensibilidade para uma pessoa só!Tem toda uma vida aí: passado, presente e futuro. Parabens!
Elisabete

Liliane Cintra disse...

Li com o coração apertado. Qdo eu acho q não dá mais pra ficar melhor, vai vc e se supera! Parabéns! Muito bom!

Andrade disse...

Realmente, muito bom, me senti dentro da história, como se fosse um personagem que acompanhava todo o enredo!! Parabéns! !