sábado, 12 de fevereiro de 2011

Culpa de Sangue

A besta resfolegava, bico entreaberto, tremendo como nunca de terror e êxtase pelo poder de tirar uma vida, pela traição ao divino. A mulher não merecia. Tinha olhos redondos peixados para o lado e um corpo lépido e ágil, típico das presas que precisam fugir de predadores. Não adiantou. Enredada no braço, gazelou-se desesperadamente. Os dedos autômatos rapinamente apertaram sua garganta. Depois de alguns minutos, soltou um piado e lebrinou para o lado, com os olhos rubros. Ainda respirava, contudo. Nessa hora, um gralhado, não sei proveniente de que falcoaria, ecoou mórbido e indiscreto enquanto os lábios se mexiam. Saltou-lhe então uma garra afiada e meteu-a entre as costelas. Sangue avinhado manchou-lhe as patas. Na Grécia, o assassínio deixava uma mácula indelével, macbethiana, signo do perdão inalcansável. O sangue de vítima espalha a morte, mancha a pele. Diz-se que o plasma morto contamina o vivo, e a morte pulsa de dentro para fora, levando à loucura e ao delírio da visão de si num espelho bizarro, deformado pelo tânatos. Abominado dessa culpa de sangue helênica, o assassino se contorcia. Seu recém-funesto prazer rexpulsava, porém, qualquer arrependimento com espasmos de adrenalina. Jogada a um canto, esvaída, a presa por fim expirou. Instintivamente, gritei de horror. A besta virou-se... e era eu.