sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Esquecimento

Esta senhora mantém uma rotina todos os dias. Acorda e joga por cima dos ombros as flores do xale, espalhando um perfume antigo. Vai ao quarto do filho, passa a mão por sobre a colcha já forrada aplainando quaisquer imperfeições como quem pede desculpas ao silêncio, como quem limpa uma memória de suas tristezas. Arruma uns lápis de cor que o rapaz nem usa mais tentando manter intacta uma infância que se foi de mãos dadas com a crueza da necessidade. Na sala, troca por outras novas as margaridas que já começam a perder do viço. Há algo que a perturba naquelas pétalas enrugadas e enegrecidas, intempéries de uma vida que andou demais na má companhia do tempo. E assim, por alguma brecha entre as grades dos afazeres de casa, todas as tardes o dia escapa despercebido, carregado pedacinho por pedacinho pelos fótons do último raio que o sol lhe jogou — último como todo raio e todo instante sempre é. É por volta desse horário que a senhora remexe a panela com a réstia de vigor que as mães usam à tardinha para se recomporem quando as chaves começam a chamar na porta da frente. E esta senhora não é diferente. Então, ela coloca dois pratos na mesa e espera pacientemente. Hoje, porém, há algo errado. Hoje, pela primeira vez, essa senhora colocou apenas um prato na mesa. Ela nunca havia esquecido. Um ano, dois meses e doze dias. Ela nunca havia esquecido. O rapaz não senta mais naquela cadeira para a qual ela agora olha fixamente, num misto de culpa e indiferença. O lugar vazio, onde sentava aquela morte que amanhecia todos os dias, foi ocupado pelo esquecimento, que entrou sorrateiro pela porta aberta da rotina. Hoje a vida descobriu que a morte vive apenas na lembrança. Hoje uma senhora descobriu que a morte nada mais é que o primeiro passo da lembrança rumo ao esquecimento.

domingo, 21 de agosto de 2011

O Sorteio

de Shirley Jackson (1916-1965)
(Tradução de Heber Costa)

A manhã do dia 27 de junho estava clara e ensolarada, com a frescura quente desses dias de verão; as flores desabrochavam aos montes, e a grama rebrilhava de tão verde. O povo do vilarejo começou a se ajuntar na praça, entre o correio e o banco, por volta das dez; em algumas vilas, tinha tanta gente que o sorteio levava dois dias para terminar e tinha que começar logo no dia 2 de junho, mas nessa, que tinha somente umas trezentas pessoas, o sorteio acabava em menos de duas horas, daí que, se começasse às dez da manhã, ainda dava para os moradores chegarem em casa a tempo para o almoço.

As crianças, é claro, se aglomeraram antes de todo mundo. A escola tinha fechado para o recesso do meio do ano. Quase todas estavam com uma agoniada sensação de liberdade. A tendência era chegarem caladinhas, ficando assim por um tempo, para depois começarem com algazarra. A conversa ainda era da escola e da professora, dos livros e dos carões que levaram. Betinho Martins já tinha enchido seus bolsos de pedras, e os outros meninos logo fizeram o mesmo, escolhendo as mais lisas e redondas. Beto e Ari de Jenésio e Dico de François — que o povo dizia “Franssóis” — acabaram juntando uma pilha bem grande de pedras num canto da praça e protegiam ela das botadas dos outros meninos. As meninas ficavam meio de lado, proseando umas com as outras, olhando os meninos por cima dos ombros. As crianças pequenininhas embolavam na poeira ou então seguravam na mão do irmão mais velho.

Pouco tempo depois, começaram a chegar os homens, cada um de olho nos seus filhos, falando de plantação e chuva, de tratores e dos impostos. Ficavam juntos, longe da pilha de pedras que estava no canto; suas piadas eram discretas, e eles mais sorriam do que riam. As mulheres, com seus vestidos de casa desbotados, chegaram pouco depois dos homens. Elas se cumprimentavam e fofocavam um pouco antes de irem para junto do marido. Daí a pouco, já perto dos homens, começaram a chamar os filhos, e eles vinham fazendo birra, depois de serem chamados quatro ou cinco vezes. Betinho Martins deu uma cabriola e escapou da mãe, que tentava pegar ele com a mão esticada, e voltou para a pilha de pedras. O pai ralhou com ele, e Betinho veio correndo e ficou no lugar dele, entre o pai e o irmão mais velho.

Quem organizava o sorteio — assim como as danças no arraial, o clube dos jovens e a quermesse — era Seu Samuel, o único que tinha tempo e energia para cuidar das atividades cívicas. Era um sujeito bonachão e jovial que tinha um negócio de carvoaria. As pessoas tinham pena dele porque não tinha filhos e a mulher lhe aporrinhava o juízo. Quando ele chegou na praça, carregando a caixa preta de madeira e acenando e falando, o burburinho aumentou entre os moradores. “Um tiquinho atrasado hoje, compadres.” O responsável pelos correios, Seu Geraldo, seguia de perto levando um tamborete de três pernas. Ele colocou no meio da praça, e Seu Samuel colocou a caixa preta em cima. Os moradores ficavam meio distantes, deixando um espaço entre eles e o tamborete. Quando Seu Samuel perguntou “Algum compadre pode dar uma mão aqui?”, o pessoal ficou meio ressabiado, até que dois homens, Seu Martins e o filho mais velho, Jessé, vieram segurar a caixa enquanto Seu Samuel remexia os papéis que estavam dentro.

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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Trecho de "O Som e a Fúria"

O Som e a Fúria (1929), de William Faulkner
(Excerto da página 76, tradução de Heber Costa)


Dois de junho de 1910.

Quando a sombra dos caixilhos aparecia nas cortinas, eram entre sete e oito horas e aí eu estava novamente imerso no tempo, ouvindo o relógio. Foi de Avô e quando Pai o deu para mim ele disse eu lhe dou o mausoléu de toda esperança e desejo; é deveras apropriado que você o use para se apoderar do reducto absurdum de toda experiência humana, que será de tão pouca utilidade para suas necessidades individuais quanto o foi para ele e para o pai dele. Eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que você o esqueça aqui e ali por alguns momentos e não despenda todo seu fôlego tentando vencê-lo. Pois batalha alguma é vencida ele disse. Nem sequer se chega a travá-las. O campo de batalha revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão dos filósofos e dos tolos.

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The Sound and The Fury (1929), by William Faulkner
(Excerpt from page 76)

June second, 1910.

When the shadow of the sash appeared on the curtains it was between seven and eight oclock and then I was in time again, hearing the watch. It was Grandfather’s and when Father gave it to me he said I give you the mausoleum of all hope and desire; it’s rather excruciatingly apt that you will use it to gain the reducto absurdum of all human experience which can fit your individual needs no better than it fitted his or his father’s. I give it to you not that you may remember time, but that you might forget it now and then for a moment and not spend all your breath trying to conquer it. Because no battle is ever won he said. They are not even fought. The field only reveals to man his own folly and despair, and victory is an illusion of philosophers and fools.