domingo, 21 de outubro de 2012

Encontro


O dia findo com as folhas de chá no fundo. Sol imerso com dois torrões doces na infusão marinha da empatia gratuita. Homem e mulher ouvindo cair na ampulheta vazia a areia dos seus castelos demolidos pelas ondas sem memórias, agora unidos na vastidão da praia. Suas pedras de sapato esmigalhadas, desfeitas em anonimidade: problemas de qualquer outro. Os cílios, descortinando dos olhos, piscam o compasso da música estática de um tempo que não passa. Braços dados, doados na verdade, dançam quietos nos ombros dos desconhecidos que se amam desde nunca. Almas sem carteira de identidade ganham três-por-quatro horas sem nomes, história muda. Companhia no conforto do silêncio por um único dia — porque sempre era muito pouco.

sábado, 28 de julho de 2012

Soneto XXIII

William Shakespeare
(Tradução de Heber Costa)


Qual receoso ator sob a ribalta,
Que por medo faz-se mero figurante,
Ou fera que a excessiva raiva assalta,
Coração fraco pela força abundante;
Assim eu, sem confiança, me esqueço
De, com ritos, selar o amor perfeito,
E a força de meu amor sente o peso
Que esse amor meu lança no peito.
Ó, minha face seja então eloquência,
Voz muda de minha alma latente,
A suplicar por amor e respondência,
Mais sonora que a língua mais fluente.
   Lê, pois, o que o silente amor anuncia:
   Ouvir pelos olhos é, no amor, sabedoria.


                        *    *    *

Sonnet XXIII
William Shakespeare


As an unperfect actor on the stage,
Who with his fear is put beside his part,
Or some fierce thing replete with too much rage,
Whose strength's abundance weakens his own heart;
So I, for fear of trust, forget to say
The perfect ceremony of love's rite,
And in mine own love's strength seem to decay,
O'ercharged with burthen of mine own love's might.
O! let my looks be then the eloquence
And dumb presagers of my speaking breast,
Who plead for love, and look for recompense,
More than that tongue that more hath more express'd.
   O! learn to read what silent love hath writ:
   To hear with eyes belongs to love's fine wit.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Dia do Menino

No barro duro da estradinha, olhando a noite profunda, o menino sorria. Saía pelo caminho inventando constelações de ideias — pequenas luzes que zuniam pela sua cabeça, misturadas às estrelas e aos vaga-lumes. Olhos cintilando, ele andava com destino certo a lugar nenhum. O que lhe importava era o capim buliçoso, o vento frondoso nas árvores, a felicidade sem motivo dos gatos, a razão de as lagartixas sempre dizerem sim, a mão passando pelos arbustos colhendo cócegas. Era por isso que andava. Andava para tirar os pés do chão, para cavalgar aquela pequena vida até onde ela pudesse ir. Andava porque aquele corpinho magro era pequeno demais para si mesmo. Ninguém jamais saberia, mas ali andava o maestro, o filósofo e matemático mundialmente desconhecido. Mas ele sabia. Mesmo sem saber o que era sinfonia, teoria ou fórmula, ele sabia. Sabia que era grande demais para aquela noite. E aquela era uma bela noite, uma noitinha faceira e despretensiosa, que só podia caminhar de mãos dadas com uma manhã contente. Ele sabia da manhã. Andava com os passos largos de sua gigantesca espera. Andava olhando para cima até que uma tontura o rodopiasse, o mundo desse mais uma volta de pião e nascesse o dia. O dia longe da casa úmida de lembranças, o dia longe de não ter pai, o dia longe do ontem, o dia da chance, o dia enorme de todas possibilidades que não lhe cabiam. O dia de amanhã.

sábado, 12 de maio de 2012

Meu Amor Distante


Abraçando tua ausência tão concreta,
Deito sozinho com teu amor distante,
Mas o vazio que nos envolve inquieta
Esse amor tão tenro, eterno infante.

E a saudade me toma logo de assalto
E rouba a lembrança que me aquece.
Eu sussurro teu nome em fogo alto,
Somente a noite escuta minha prece.

Não é ciúme, porém, meu transtorno
Nem por angústia que fico desperto:
É que anseio pela luz de teu retorno,
Mas te sinto, amor, sempre bem perto.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Devoção


Cada dia rastejo sobre o desamparo, buscando sorver as migalhas de um desprezo que reluz a amor. Meu corpo dói hoje como se nunca tivesse sentido um carinho. São milhões de anos desde teu gesto de ternura de ontem. De joelhos, venho eu, com o pecado da solidão nas mãos postas, desejando a bênção de teu afeto, a água benta da tua boca molhada, a luz divina de teus olhos. Tento profanar tua sublime indiferença com beijos lassos, com os passos soltos de minha dança pagã e prosaica. Mas tu, divindade volúvel, me negas a face, desfazendo-te inefável na bruma fria de meus pantanosos sonhos. É isso, então. Tu, que nunca foste deusa, assoberbada do altar que te construí, agora esfregas na minha cara com teus pés dionisíacos a ambrósia amassada e o néctar putrefato da frustração, esse pomar em que grassam os frutos da minha insegurança. Em meus anseios súbitos de iconoclasta, quero negar a devoção, espatifar tua imagem marmórea da minha mente e mastigar esses pedaços brancos até que se confundam com meus dentes, com meus ossos, para que sejas cálcio da minha fraqueza. Antevendo o sofrimento do meu futuro agnóstico, porém, abandono minhas heresias e volto para ti com voz mansa e oferendas de amor eterno, lacaio de minha própria devoção.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Soldado, Donzela e Flor

Eugene Field (1850-1895)
[Tradução de Heber Costa]


“Toma, querida”, diz um soldado,
“E teu corajoso adeus me concede;
Talvez juntos não nos queira o fado,
Mas o amor nunca à morte cede.
Que me seja leal tua verdade aqui,
‘inda que a sina não dê certezas,
‘Alma aos céus, meu coração a ti’,
Querida, não me esqueças!”

A donzela aceitou a flor mimosa
E a embalou com seus prantos:
Ah! Partiu ele em hora desairosa
E não voltou 
pós anos tantos.
Foi-se pr’uma morte d’herói
Sob chumbo em correntezas;
Mas no peito dela ‘inda sói
‘quela flor, não-me-esqueças.

E quando não tornou ele co’a paz
Vinda dos muitos anos de sangue,
Contra o viúvo seio, ela premiu assaz
O pequeno botão ora exangue.
Oh, há amor, sossego e agonia,
Entre tantas bondades e vilezas,
Mas que convivem na harmonia
D’uma tenra não-me-esqueças.

Um túmulo anônimo e sem ornamento,
Eu hoje anseio muito visitar —
Se era azul ou cinza seu fardamento,
Que nos importa isso perguntar?
“Ele amou uma mulher”, basta dizer;
E ali, nas sagradas redondezas,
Per’imortal amor da dama, estender
Longas filas de não-me-esqueças.


                ***

Soldier, Maiden, and Flower 
Eugene Field (1850-1895)


"Sweetheart, take this," a soldier said,
"And bid me brave good-by;
It may befall we ne'er shall wed,
But love can never die.
Be steadfast in thy troth to me,
And then, whate'er my lot,
'My soul to God, my heart to thee,'--
Sweetheart, forget me not!"



The maiden took the tiny flower
And nursed it with her tears:
Lo! he who left her in that hour
Came not in after years.
Unto a hero's death he rode
'Mid shower of fire and shot;
But in the maiden's heart abode
The flower, forget-me-not.


And when he came not with the rest
From out the years of blood,
Closely unto her widowed breast
She pressed a faded bud;
Oh, there is love and there is pain,
And there is peace, God wot,--
And these dear three do live again
In sweet forget-me-not.

'T is to an unmarked grave to-day
That I should love to go,--
Whether he wore the blue or gray,
What need that we should know?
"He loved a woman," let us say,
And on that sacred spot,
To woman's love, that lives for aye,
We'll strew forget-me-not.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Arborescer

Deitado na cama, vi meu olhar descobrir lentamente minha mulher, que contemplava, com o ceticismo da experiência, a volúpia monótona da rua abaixo. As últimas luzes do dia a envolviam, desenhando em alto contraste sua imagem recostada na janela. A pele marcada e foliculosa mapeava cada passo dos meus olhos. Embora magro, o corpo claramente havia sopesado a rígida arrogância da carne na flacidez do tempo, arvorando-se de um aspecto lânguido, porém resoluto. As pernas fibrosas já não vertiam a seiva enérgica da juventude, mas se plantavam firmes no solo rachado de seus pés. Do tronco, seus seios pendiam maduros sobre o braço esquerdo e falavam da serenidade dos anos na silenciosa linguagem do corpo. O cotovelo direito apoiado em ângulo reto emoldurava seu torso, retratando as sardas de sua mais tenra maturidade. Tinha o cabelo preso, em cachos suspensos sobre o calor que ramificava de sua nuca molhada. Da boca fecunda, florescia um meio-riso viçoso — não sei se irônico ou já nostálgico — das frutíferas alegrias que parecia poder profetizar simplesmente observando as unhas esmaltadas. No rosto, podiam-se ver algumas rugas marcando as raízes de suas preocupações. Pensamentos sulcados germinavam no canto dos olhos. Eram olhos de âmbar cristalino, e sua luz perene alimentava meu sol, numa fotossíntese às avessas. Num gesto fértil, quase corriqueiro, ela virou-se para mim, desfolhada de acessórios, com a graciosidade dos ramos ao vento. E ali se deteve enquanto eu, simbionte, absorvia em catarse a beleza cotidiana que brotava daquela mulher.