sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Soneto XXX

de William Shakespeare
(Tradução de Heber Costa)

Nas sessões de suave silêncio estudado,
Evoco lembranças de cada prisco evento,
Lamento a ausência do por mim buscado,
E velhas mágoas vertem-me valioso tempo:

Então, afogo meus olhos, áridos de costume,
Por irmãos ocultos na noite eterna da morte,
E de novo choro as mágoas que o amor reúne
E lastimo a perda daquilo que jamais volte:

Então, posso de antigos lutos enlutar-me,
E, mórbido, recontar de pranto em pranto
O triste relato de um desolado desaire
Que outra vez sofro, sofrendo outro tanto.

Mas, se por instantes penso em ti, querida, 
Toda perda se restaura, toda tristeza finda.


                *          *          *

Sonnet XXX

When to the sessions of sweet silent thought
I summon up remembrance of things past,
I sigh the lack of many a thing I sought,
And with old woes new wail my dear time's waste:
Then can I drown an eye, unused to flow,
For precious friends hid in death's dateless night,
And weep afresh love's long since cancell'd woe,
And moan the expense of many a vanish'd sight:
Then can I grieve at grievances foregone,
And heavily from woe to woe tell o'er
The sad account of fore-bemoaned moan,
Which I new pay as if not paid before.
But if the while I think on thee, dear friend,
All losses are restored and sorrows end.

sábado, 6 de abril de 2013

História de um Silêncio

Primeiro, você. Você vai fazer compra? Eu devia ter percebido a distância multiplicada nas letras. Teu tu pessoal, relativo à intimidade, declinou para outro pronome, de tratamento estranho, com pompa e circunspecto, do caso sério. Tu não era assim. Eras. Há eras que nossa vida era paleozoica. Tudo era esse mesmo imperfeito, esse presente que ficou no pretérito... Busco sinal, signo ou símbolo que mostrasse este futuro. Encontro um marco da queda de nosso amor bizantino: o sumiço dos teus vocativos. Vou sair. Também vou sair, amor. O meu se pendurava nas últimas vírgulas, adiando o ponto final. Mas já subia a muralha entre nossa idade antiga e a meia idade. E meu vocativo ficou cá, oriental, sem coca-cola nem outras benesses do teu capitalismo. No hiato dos dias, as falas se repetiam — as tuas como farsa, as minhas como tragédia — no jogo coreografado do tempo. Até que, por fim, teu verbo conjugal restava inflexível, ficou história. E minhas palavras foram apenas eco dos teus últimos silêncios.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Nascimento de uma Palavra

No início, era um não-verbo alojado no córtex frontal. Saiu ensanguentado, cirurgicamente removido a machadadas de neurônios, ainda coberto sílabas amnióticas e liquefeitas. Mal se desgarrara, sentiu de súbito um impulso quase elétrico, mas mal articulado, de dizer. Saiu neurotóxico, inebriando o sistema, e passou intempestivo pelo lobo temporal, como um rastro de memória. Desceu não se sabe como para a laringe e tangeu com angústia as cordas vocais de tons vermelhos e graves. E de tanto badalar nas amídalas terminou por roçar na língua. Pelo contato promíscuo das papilas, contaminou-se de ideias agridoces e acabou pegando gosto por sentido. Na mucosa, aftou-se em discursos inflamados. Labial e articulada, sangrou as gengivas, aturou os dentes, mordeu a língua. A boca então, fustigada como nunca, por fim cedeu à sua vontade: abriu — e fez-se a palavra.