segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Ponte do Riacho da Coruja

Ambrose Bierce [1842-1914] (tradução de Heber Costa)

Parte I

Um homem de pé numa ponte férrea no norte do Alabama, olhando para as rápidas águas muitos metros abaixo. Mãos para trás, punhos atados e uma corda bem justa em redor do pescoço. As tábuas soltas sobre os dormentes, onde estavam deitados os trilhos, serviam de apoio para ele e seus executores — dois soldados da União comandados por um sargento que parecia ter sido um xerife na vida civil. Pouco atrás, na mesma plataforma, um capitão. Havia uma sentinela parada, qual um adorno, em cada cabeça da ponte. Não se via ninguém mais na ferrovia que adentrava uma floresta e fazia uma curva para além da vista. Na outra margem, ladeados por rifles e o focinho protuberante de um canhão, estavam os espectadores — uma companhia de infantaria em linha com um tenente à direita apoiando as duas mãos sobre a espada espetada no chão. À exceção da comitiva no centro da ponte, nenhum homem se movia: todos os olhares petreamente voltados para a cena. O capitão restava silente, sem fazer qualquer sinal. A morte é um dignitário que, quando anunciado previamente, deve ser recebido com manifestações formais de respeito mesmo por aqueles que já lhe são muito familiares.

A julgar por suas vestes, o homem à beira do enforcamento parecia um civil fazendeiro. Suas feições bem delineadas — nariz reto, boca firme, bigode e um cavanhaque pontudo, cabeleira escura e longa penteada para trás — e uma expressão serena dificilmente esperada no rosto de alguém com a corda no pescoço diziam claramente que esse não era um assassino qualquer. A forca do exército, no entanto, não faz acepção entre cavalheiros e outros tipos de pessoas. Quebrando a rigidez, os soldados deram um passo ao lado e retiraram duas tábuas; o sargento se deslocou para as costas do capitão, que por sua vez saiu do apoio. Com essa coreografia, o sargento e o condenado ficaram nas pontas opostas da última tábua. Com um movimento do militar, o homem cairia por entre as vigas da ponte. Como não lhe puseram venda ou capuz, sua mente vagava pelo cenário abaixo: a água, tocada em ouro pelo sol, o nevoeiro que cobria as margens rio abaixo, os soldados, um galho flutuando — tudo o distraía. Fechou os olhos para fixar em seus últimos pensamentos a imagem da esposa e dos filhos. Então, trespassando a lembrança de seus entes queridos, veio o som agudo de uma percussão metálica, perto ou imensuravelmente longe, regular, lento, como badaladas fúnebres. Esperava cada batida com impaciência e, não sabia por quê, ansiedade. O silêncio crescia a cada intervalo, demarcando um espaço enlouquecedor entre os sons pontiagudos e perfurantes. Era seu relógio de pulso. Abrindo os olhos, em sua mente faiscaram pensamentos, transcritos aqui como “se livrar as mãos, posso tirar o laço e mergulhar na corrente, evitando as balas, entrar no bosque e fugir para a minha casa, que está fora do alcance deles, graças a Deus”. Enquanto relampeavam essas ideias, o capitão acenou com a cabeça para o sargento. O sargento deu um passo à direita.

Parte II

Peyton Farquhar era um respeitado fazendeiro sulista, dono de escravos e devotado à causa da Secessão. Ele não pôde servir ao exército confederado, pelo que lastimava, mas acreditava que oportunidade de um grande feito se apresentaria para todos no decorrer da guerra. Certa tarde, enquanto Peyton e a esposa descansavam num banco à entrada de sua propriedade, um soldado vestido um uniforme cinzento apareceu pedindo água. Enquanto a senhora corria com boa vontade para pegar a água, Peyton perguntou ao recruta avidamente quais as novas. “Os ianques estão reparando as linhas férreas”, disse o homem. “Chegaram ao Riacho da Coruja, a uns 50 quilômetros daqui, e reconstruíram a ponte. O comandante decretou que qualquer civil pego em sabotagem será sumariamente enforcado.” Peyton perguntou se havia segurança. “Só um posto improvisado no meio do caminho”, respondeu. “Suponha que um homem — civil e estudioso do enforcamento — conseguisse passar pelo posto e pelas sentinelas, o que ele poderia fazer?”, indagou Peyton com um sorriso. “Há um mês, quando passei lá”, disse o soldado refletindo, “havia uma pilha de galhos acumulados pelas corredeiras que hoje devem estar secos e queimariam como carvão”. A senhora chegou com a água, o soldado agradeceu com cerimônia e se foi. Ao anoitecer, o soldado passou pela fazenda, fazendo o caminho inverso. Não era um sulista, era um batedor do exército da União.

Parte III

Quando caiu por entre as madeiras da ponte, Peyton perdeu a consciência, como se já estivesse morto. Acordou desse estado — séculos depois, pareceu-lhe — por conta de uma dor sufocante e uma pressão na garganta. Agonias afiadas e penetrantes eram disparadas de seu pescoço para todas as fibras de seu corpo, irradiando-se com uma rapidez inconcebível, como correntes de fogo pulsante aquecendo seu corpo a temperaturas intoleráveis. Essas sensações não tinham a companhia de pensamentos. A parte intelectual de sua natureza tinha sido erradicada: ele só podia sentir — e sentir era um tormento. Ele era o coração flamejante de uma nuvem luminosa, sem substância material, oscilando em arcos impensáveis como um pêndulo enorme. Subitamente, a luz se lançou para cima com um estrondo e um pavor rugindo nos seus ouvidos… então, tudo ficou frio e escuro. O poder do raciocínio retornou; sabia que a corda tinha partido e ele caíra no rio. O laço sufocava seu pescoço, mas mantinha a água fora dos pulmões. Abriu os olhos e viu um brilho se esvaindo. Estava afundando. Morrer enforcado no fundo do rio! — a ideia lhe pareceu hilária. Viu, então, a luz ficando mais forte, agora ele estava subindo. Num esforço inconsciente e sobre-humano, ele livrou as mãos e arrebentou o laço. Seu pescoço doía terrivelmente; seu cérebro pegando fogo; e seu coração deu um grande salto tentando sair pela boca. Autômatos, seus braços e pernas batiam vigorosamente em direção à superfície. Quando a cabeça rompeu a superfície da água, seu peito se expandiu convulsivamente, recepcionando a golfada de ar com um grito agudo.

Todos os seus sentidos físicos estavam num alerta que lhe fazia perceber tudo ao seu redor de uma forma nunca experimentada por ele. Olhou para a margem e viu cada árvore, e cada folha nessas árvores e cada veia das folhas — viu até os insetos nelas: gafanhotos, moscas brilhosas, aranhas cinzentas. Percebeu as cores prismáticas de cada gota de orvalho em milhões de hastes de grama. O zunido dos mosquitos que dançavam nas poças da margem, o bater das asas das libélulas, as pancadas das pernas das aranhas aquáticas — tudo isso compunha uma música audível. A corrente fez um rodopio, e ele viu a silhueta dos soldados na ponte recortados contra o céu azul: eles apontavam e gesticulavam, eram movimentos grotescos e formas gigantescas. Então pequenas nuvens azuis começaram a emergir dos soldados, e zumbidos duros atingiam a água ao redor dele. “Depois disso, eu não vou levar um tiro; não é justo”, pensou. Peyton mergulhou o mais fundo possível. Tentando voltar à superfície, encontrava pedacinhos brilhantes de metal afundando lentamente — alguns o tocavam na face e nas mãos no caminho inverso ao seu.

Emergiu de novo, buscando fôlego, e notou que tinha ficado muito tempo submerso: estava bem mais distante da ponte, mais próximo da segurança. Um apito alto, diminuendo, terminou por morrer numa explosão que levantou uma parede de água contra ele. O canhão havia entrado no jogo. Enquanto pensava em como escapar, sentiu-se rodar e rodar, vendo a margem, a floresta, a ponte, os homens, a margem, a floresta… tudo se amalgamando em faixas horizontais coloridas e borradas. Sem que pressentisse, foi jogado nos seixos da margem esquerda, alcançando algumas rochas que se projetavam. A parada súbita e o atrito de suas mãos o restauraram, e sentiu-se chorando de alegria. Tateou até que seus dedos finalmente se enterraram na areia. Jogava punhados dela sobre si mesmo, como diamantes, rubis, esmeraldas. As árvores da margem estavam separadas por espaços regulares, como num jardim. Uma estranha luz rosada passava por entre elas, e o vento tocou nelas a música das harpas eólicas. Com um disparo aleatório de despedida, o canhão atingiu os ramos mais altos, acordando-o de seus devaneios. Ele ficou de pé e subiu correndo a margem íngreme, lançando-se floresta adentro.

Guiado pelo sol, Peyton percorreu o dia inteiro a mata interminável, cansado, faminto, mas impulsionado pela lembrança de sua mulher e filhos. Não sabia que vivia numa região tão isolada e selvagem. Havia algo de sobrenatural nessa revelação. Acabou achando uma estrada larga, que parecia nunca ter sido usada. Os corpos escuros das árvores ladeavam o caminho como paredes retas até o horizonte e de cada lado vinham ruídos bizarros, entre os quais — uma vez, duas e mais outra vez — ele ouviu sussurros em uma língua desconhecida. No céu, grandes estrelas douradas pouco familiares agrupavam-se em constelações estranhas, dispostas de uma forma que denunciava um significado secreto e maligno, tinha certeza disso.

Levantou a mão e sentiu que seu pescoço estava doendo e intumescido; não podia mais fechar os olhos, de tão congestionados; sua língua estava inchada de sede. Mas quão suavemente a turfa havia acarpetado a aquela avenida não trafegada — ele não sentia mais a estrada sob seus pés! Sem dúvida, a despeito do sofrimento, ele havia adormecido enquanto caminhava, pois agora ele via outra cena, talvez meramente recobrada de um delírio: estava no portão de sua casa. Tudo estava do jeito que deixara. Uma manhã brilhante e bela; ele devia ter viajado a noite inteira. Abriu o portão e caminhou. Nos degraus ao pé da varanda, está sua esposa, bela e doce e perfumada, com um sorriso de alegria inefável e uma postura graciosa. Ah, como ela é linda! Ele vai em sua direção, com os braços estendidos, e está prestes a abraçá-la quando sente um violento golpe na nuca; uma luz ofuscante o envolve com um som que parece o impacto do canhão — então tudo é escuridão e silêncio!

Peyton Farquhar estava morto. Seu corpo, com o pescoço quebrado, balançava suavemente de um lado para o outro entre os dormentes da ponte do Riacho da Coruja.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Órion

Diz que coube à deusa lunar Diana, ainda no auge da juventude eterna, conduzir os caçadores do Olimpo. Seu bando se movia ao seu olhar, e suas palavras tinham o peso da prata. A vida de cinzas e sangue lhe extirpara todas as gentilezas e lhe fizera seca. E assim foi. Decorridas muitas das auroras infinitas, sua autoridade inquebrantável balançou do alto de sua morada, donde ameaçava despencar: dizia-se à boca miúda que, dentre todos, havia um preferido de Diana. Decerto suas flechas relampeariam por qualquer que sugerisse tal coisa. Mas a fúria era espelho da verdade, pois a irmã de Apolo, caçadora fria, sentia-se arder quando Órion se aproximava dela. Nesses momentos, de seta a alvo, a deusa tremia, alvejada pelo mais ligeiro olhar do gigante cujos pés sem esforço tocavam o fundo do oceano. Seu estado de convalescência piorava quando ele ia embora, levando consigo seu corpo tépido e deixando uma ausência que nenhum deus preenchia. Mas ele voltava, e a deusa de modos incautos pisava leve quando lhe dava a mão, e caçavam juntos outono adentro, entre sorrisos e oliveiras. Manipulavam suas habilidades de caça, um tentando entregar ao outro a vitória indesejada sobre seu amado. Sim, amavam-se. Diana o amava tanto que pediu a Vulcano que forjasse para Órion um cinturão com três pedras que fulguravam diante o brilho do sol, para que ela sempre soubesse onde ele estava. A vida corria bem, mas os deuses, à feição dos humanos, têm em si algo que lhes consome, uma insatisfação eterna, uma propensão ao conflito — e com Apolo não era diferente. O dono da carruagem solar sentia-se corroer dentro de suas vestes divinais, inflamado por uma mandrágora que medrava no seu peito com a feição do ciúme, mas as raízes robustas da inveja. Certo dia, quando Órion partiu em sua caminhada marítima, Apolo, vendo o caçador submerso até a altura do pescoço já quase ao pé do horizonte, correu a esconder o sol no crepúsculo. Voltando ao cume do Olimpo, o deus do sol provocou Diana, dizendo: “Dizem que teus hábitos amorosos têm diminuído teus talentos. Vês aquela bolota escura no fim do oceano? Hoje tenho dúvidas de que consigas acertá-la”. Os deuses são vitimados por muitos sentimentos, mas um deles reina acima de todos. A deusa da lua então puxou do alforje uma seta cheia da mais pura vaidade e lançou-a com toda sua força. Em segundos, a flecha trespassou a cabeça mortal do filho de Netuno. As águas tornaram-se mais salgadas pelas lágrimas das ninfas, peixes morreram, algas secaram. Cheio do mais profundo respeito, o mar carregou o corpo de Órion até às margens, onde águas-vivas o velaram multiplicando o luar. Ao longe, Diana o viu. Correu até ele e lhe pôs a cabeça no colo. De um olho, saía uma seta de ponta rubra. A vida escorreu pálida, e sua imagem começou a esfacelar-se na areia. Tomada de desespero pela tragédia e para que não o perdesse de todo, ela pediu a Júpiter que o guardasse entre as estrelas, onde desde então, com seu cinturão incrustado, Órion campeia.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Oblíquo


O amava, mas tão imprópria quanto um pronome oblíquo no início de uma frase. Era um amor pálido, arco-íris sem gotículas, difuso como a última sombra que o por-do-sol descartou. Seus dias eram dúbios, certezas apagadas na paixão, ilhadas por questões de todos os lados. Seus olhos mentiam a cada hora, cada dia, marcando a fronteira entre o vizinho “te amo” e o distante “amo você” (às vezes, seguido do vocativo redundante, dupla mentira, “meu amor”). Mentia porque precisava. Vir, ver, vencer. Seu sangue bombeava liberdade pelo seu corpo, ao que o cérebro respondia com necessidade. Ficaria ali até quando não mais estivesse em si. Lábios frígidos de desamor tocavam o outro ouvido com a doçura das falsidades mais tenras. Era sua especialidade. Seus seios latejavam de angústia, que ela transfigurava num desejo maquiado, mamilos eriçados de frio. Suas coxas tremiam de rigor, que ela manejava em orgasmo forçado. O nome do que lhe possuía saltava de sua boca na rejeição murmurada, queimando amargo em sua língua, travestido de deleite. E assim seria: de casa em casa, de cama em cama, de amor em amor... até que não mais murmurasse. Até que encontrasse aquele que lhe desnudasse da falsidade do amor perfeito. E a esse, amava-o.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Passado

Poucas pessoas sabem, mas, quando olhamos para o céu, tudo que vemos é passado. Uma história escrita em luminares que estiveram a uma distância de milhares de anos. E pior: elas não sabem que somos, nós mesmos, passado. Para nós, as estrelas sempre estiveram lá. Para as estrelas, toda a humanidade luziu por um bilionésimo de segundo a um canto do céu e já sumiu, como uma tocha ramalhada antes do mergulho. No universo, não existe tempo e espaço, mas espaço-tempo. Passou-se um segundo e, parados, já estamos num ponto do universo que fica a dezesseis quilômetros de onde estávamos. Essa trajetória em direção ao nosso destino (um Hércules que desenhamos no céu e que não estará mais lá quando chegarmos) é estática para o nosso milésimo de vida. Alguns, perdidos em tal falta de referência, ignoram; outros, indiferentes, são bactérias viajando numa bola de golfe: sem saber que vão, mas indo. Nesse ritmo, percorremos, todo ano, quase mil anos-luz. Há também muitos não entendem que um ano-luz é uma distância, não um tempo. É uma distância tão grande que, quando essa luz que partiu há tempo chega até nós, já se esqueceu e virou sombra. E nós também partimos — sombras que a luz esqueceu — e viramos tempo. Mesmo assim, queremos obcecadamente deixar para trás o passado e viver o presente. O que é, afinal, o presente? Aqui e agora? Aqui, já não estamos mais; e agora já passou. Tudo ocorre para nós tão instantaneamente que esquecemos que o presente é nunca; nunca chega a ser este instante, porque este instante acabou. No fim, o futuro é uma promessa que inventamos a cada presente; e o presente, uma parte tão infinitesimal do agora, que acaba se revelando uma sucessão de passados. Por isso, quando olhamos para o céu, tudo que temos é passado. Um grande e longo passado que vivemos agora, neste instante.

domingo, 15 de agosto de 2010

Um Assalto

E pensar que o dia tinha começado sem sobressaltos, com as tarefas do dia cavalgando minhas preocupações. Padaria, sapateiro, banco. Agora eu estava ali, com uma arma na cabeça e sob a mira de dezenas outras. Era a única barreira entre um assaltante desesperado e policiais estressados. O assalto começara como de costume. Onze da manhã. Banco lotado. Um velhinho começou a discutir com o segurança por conta do seu guarda-chuva (claro!), que tinha ficado preso na gaveta da porta-giratória. Foi a deixa. Em questão de segundos, se aproveitando da distração gerada, o gatuno rendeu o segurança e mandou todo mundo se abaixar. Não houve confusão nem gritaria. Encheu as sacolas de salários e ia partir quando, por um desses acasos inacreditáveis, apareceu um carro da polícia. Aí o larápio puxou o primeiro idiota que estava do lado: eu. Antes só mais uma vítima, agora eu tinha sido promovido a refém. Perpetuando o clichê, a polícia mandou sair com mão pra cima. O assaltante gritou que ficaria ali o ano inteiro se preciso. Era um impasse. Houve queixumes e murmúrios de insatisfação. O motoboy protestou, dizendo que ganhava por corrida. A dona de casa, profunda conhecedora das prioridades na vida, disse que ainda tinha almoço por fazer e roupa pra lavar. O advogado já procurava seu cartão de visitas, e o taxista que o esperava lá fora tinha um sorriso discreto. O ladrão tratou de acalmar os presentes, prometendo que faria o possível para que tudo fosse rápido. Como todo bom político, sabia que não podia desagradar seu eleitorado. Em instantes, já havia mais câmeras apontadas do que armas — captando fatos, e transmitindo notícias. Chamaram familiares do bandoleiro e montaram uma matéria, uma espécie de notícia aumentada, um ponto a mais no conto. Ele mandou ligarem a TV da parede. Alguns xingamentos foram sussurrados quando o aparelho acendeu — num acesso de preguiça, o responsável por ligá-la para o público teria dito que estava quebrada. No plantão ao vivo, aparecia a mãe do rapaz trabalhador que apontava um revólver enferrujado pra minha cabeça. Eu me perguntava se, sobrevivendo à bala, seria capaz de escapar ao tétano. Se aproximava do meio-dia, e os estômagos ameaçavam se amotinar. Atento, o estudante dedicado que havia me feito de refém pediu que trouxessem comida, mas desistiu quando um policial lhe informou que seria feita uma licitação. Ordenou, então, que trouxessem sua mãe. Meia hora depois, chegou uma senhora com olhos pesados de vergonha. Deixaram que entrasse no banco, o filho atencioso que andou com más companhias explicou o mal-entendido à mãe. Entregou-lhe a arma e estava prestes a se render quando houve um tiro. Calma, o jovem carente estava intacto. Seria encaminhado a uma unidade de correção juvenil. Eu havia sido atingido na perna, mas me senti melhor porque, segundo o noticiário, eu fui medicado e passava bem. Apesar de toda essa história, o que mais me impressionou foi a manchete da primeira capa: Participante do BBB está grávida!

sábado, 17 de julho de 2010

Diário de um Soldado


É quase hora, meu amor. O trovão anuncia a chuva de chumbo que escurecerá o sol antes de nos lançarmos sob a sombra da morte deste vale. Estas páginas ensebadas, por desprezo ou desgosto, resistem ao lápis rombudo que registra o inexprimível com letras desfocadas. Um diário que não conhece dias neste limbo cinzento situado entre o tempo, a vida e a morte. Aqui, tudo é espera… até que não seja mais. É quase hora, e juntos estamos todos sozinhos nesta nossa terra de ninguém. Nós estamos nas covas. Lá fora, descansam em paz as crianças da guerra, ocultas sob a mortalha da neblina. Como marionetes imóveis dependurados em arames farpados ou amontoados nos maus lençóis de uma cruel isonomia, dormem bravos e covardes, intelectuais e operários, crentes e ateus, heróis e bandidos. É quase hora, e os corvos bicam os olhos que já não serviam mais. Eu vi esses olhos foscos de exaustão eterna, aguardando somente o dilatar das pupilas: janelas abertas da alma que voa embora para a escuridão, cansada de desesperança. Olhamos e olhamos, mas não há nada nesta terra encharcada de sangue e chuva que se pareça com futuro. Só nos resta, então, o presente que nos deram. Aqui, jazemos. Sem glória, sem bandeira, sem lágrimas. É quase hora, e os mortos que ainda vivem se levantam mecanicamente de armas em punho, há muito esquecidos do que teria sido o desespero. Rufam os canhões. Calamos nossas baionetas cegas. Minha mente vazia inunda-se de memórias da tua imagem liquefeita, uma aquarela difusa de tuas maravilhosas insignificâncias cotidianas e dos subestimados prazeres de podar roseiras e alimentar bichos. Silêncio. Lembro-me claramente do teu beijo de boas-vindas que nunca aconteceu, o primeiro depois do último. É hora.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Celebração

Aos amigos.

A amizade poderia ser dividida em parcelas: tempo, consideração, companheirismo. Quem tem um amigo, porém, há de concordar que essa dívida benéfica é muito mais que a soma de palavras desgastadas. Há algo de místico nos amigos, e isso vem à tona nos momentos alegres, ébrios ou sóbrios, e também nas brigas e bravatas bem dosadas, em que se festeja, sob as luzes da empatia, a feliz coincidência da existência conjunta. A amizade é um parentesco voluntário, um acordo mútuo que se pode desfazer a qualquer tempo sem ônus para as partes — mas que inexplicavelmente não se desfaz. É um estranho magnetismo a que cedem cardeais e marginais, tiranos e insanos, uma união calcada em lágrimas e risos e confidências, não raras vezes mais forte que um laço sangüíneo. Aos amigos, entregamos a chave de nossas culpas e inseguranças, e o que cimenta o muro da amizade não são tijolos de nossas forças conhecidas, mas a ligação perene das fraquezas argilosas reveladas. Enfim, como já se disse, a fortaleza intrigante da amizade não está nos amigos serem amigos por causa de suas características, mas a despeito delas. A isso, celebremos.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

CXXX

de William Shakespeare (trad. livre de Heber Costa)

Em nada lembram o sol, os olhos de minha amada;
E, perto de sua boca, corais são mais avermelhados;
Se a neve é branca, sua pele é só morena, mais nada;
Se cabelos são adornos, os seus são pretos, não dourados.
Já vi rosas vermelhas, brancas, em tom de damasco,
Mas não vejo em sua face nenhum matiz cálido;
E muitos perfumes trazem mais deleite num frasco
que o odor que minha amada exala no seu hálito.
Eu amo ouvi-la falar, mas bem sei eu
Que a música um som muito mais belo encerra.
Da deusa, nunca vi um único passo seu;
Minha amada, quando anda, põe os pés na terra.
Mesmo assim, ó céus, meu amor é tão encantada
Quanto qualquer mulher por metáforas inventada.



My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground:
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.

Para ouvir a versão original, recitada por Alan Rickman, clique aqui.

sábado, 5 de junho de 2010

Lili-fut

Houve uma vez um homem sábio, um filósofo-cientista, cujo único propósito era descobrir os segredos da natureza e preocupar-se com questões maiores do que a vida cotidiana. Chamava-se Galilóide. Certa ocasião, quando viajava pelos cinco mares (nem todos haviam sido descobertos ainda), sua embarcação perdeu o norte e, sob tormentas devastadoras, sucumbiu. Eis que Galilóide, por um capricho do acaso, foi o único sobrevivente do infortúnio. Quando acordou, estava numa ilha, mas não deserta. Olhavam para ele curiosos nativos. Em uma espécie de diário que mantinha — fonte única deste relato —, Galilóide registrou: “Tinham a cabeça muito pequena, como os pigmeus de Bora-Bora, mas a compleição física era robusta como a de um montanhês do Piamonte”. Dono de habilidades lingüísticas incontestáveis, em poucos minutos de observação o filósofo concluiu que falavam uma espécie de galego ou occitano, línguas em que Galilóide só não era mais fluente porque não lhes dedicou tanta atenção quanto ao toscano. Pôde então descobrir o lugar era chamado de Lili-fut e que, afora atender às necessidades fisiológicas, a ocupação exclusiva desse povo ágrafo era se entreter com um jogo que consistia em propulsionar um objeto redondo, apelidado balo — na verdade, fibras de coqueiro enroladas à maneira de uma bobina, mas como meridianos — através do espaço adversário, demarcado por dois troncos na vertical. A princípio, talvez pelo seu espírito científico, o jogo pareceu até interessante a Galilóide. No entanto, após cerca de uma hora e meia, tempo médio da peleja medievalesca, o sábio já estava enfadado. Curiosamente, esse foi o tempo exato que levou para os nativos começarem a perder seu interesse fugaz pelo cientista. Enquanto manteve sua boca fechada, Galilóide pôde estudar livremente a estrutura social dos nativos e percebeu que, enquanto o grosso da população esfolava-se na extração vegetal e atrás do rotundo objeto, as realezas tribais consumiam as melhores guloseimas e deitavam-se com as mulheres mais bem-apessoadas. Humanista que era, o sábio indignou-se com a situação daqueles ignóbeis seres humanos e começou a propagar aos quatro ventos sua constatação: em Lili-fut, o balo era só um engodo. Mas anos de sedentarismo cerebral fizeram com que a debilitada mente dos lilifuteanos falhasse até mesmo em alcançar as não tão complexas elucubrações do filósofo-cientista, e as palavras dele caíram ao vento e foram carregadas pelos pelicanos para longe de suas atenções. Ao que parece, algum vento ou pelicano deixou cair sobre os ouvidos dos príncipes o que o estrangeiro andava apregoando. Na última entrada de seu diário, memórias escritas no cárcere, Galilóide registra que foi instituído um tribunal para julgá-lo pelas calúnias contra a única expressão da cultura nativa — a saber, o lili-fut-balo. E disto não há dúvida: sua sentença foi de morte.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Amor Impuro

Cada vez que beijava aqueles cabelinhos ingênuos e fechava silenciosamente a porta do quarto, eu levava minhas esperanças mirradas de uma noite bem-sucedida. Deixando teu sono aos cuidados de uma prece corrida, eu seguia os passos do destino sob as bênçãos dos santos que ainda restassem na ala celeste dos piedosos. Não me julgue tão friamente: nem santo nem anjo tomaria meu lugar. Nem por um minuto, porém, minha mente deixou de estar ao teu lado, cobrindo teus medos e consolando teu choro. É que a rua foi minha mãe, e a solidão minha única companheira até que, por um acidente sem nome, tua alma nascesse dentro de mim trazendo uma faísca de vida, um sentido para alimentar meu corpo vazio e viver outro dia. Ao menos isso eu te devia, e pagaria com sangue e sofrimento. Agora que me vou, peço que não tenhas vergonha. Mas também não digas ao mundo da imundície dos que consumiram minhas entranhas nem digas como rompi as finas cordas que seguravam sobre os ares a moral e os bons costumes — inalcançáveis a todos, mas cuja propriedade é reclamada pelos travestidos de pureza. São eles que podem te machucar, plantando palavras que resultam estéreis no arado bruto da sobrevivência: honra, decência, dignidade. Depois que revelares quem sempre fui, estarás sozinho, à mercê dos imensos braços do abandono. Não o faça. Eles jamais admitirão, mas sabem que, no preto dos quartos, o certo e o errado vestem as mesmas roupas e sujam-se de suor e sêmen, misturando verdades negras e mentiras claras, somente para no outro dia, de camisas brancas bem passadas, beijarem despedidas tenras com suas bocas lascivas antes de seguirem para o trabalho. Nesse carneval de corpos em preto-e-branco, todas as noites eu fui arlequina sem máscara, solidão nua no baile dos mascarados. Longe de mim mesma, infinitas vezes assisti à última cena daquela pantomima carnal, em que meu coração humilhado rejeitava — com uma mão pedinte estendida, implorando — cada cédula escarrada por aquele desprezo que poucos minutos antes foi cúmplice no gozo. Era assim até que o dia ameaçasse a noite com revelações, e ela ia embora, levando os covardes na sua fuga. A essa hora, enquanto os sinos badalavam a condenação das seis, eu arrumava o atoalhado surrado e colocava teu prato na mesa bem servida por meu amor impuro, mas verdadeiro.

domingo, 18 de abril de 2010

O Menino que Conheceu o Céu

“Pai, como faço pra chegar no céu?”, perguntava. “Você não vai querer ir pra lá agora, meu filho”, brincava o pai. Cansado de lógica em vez de respostas de um mundo possível, Miro dependurava as pernas na janela, como num balanço, e deixava o vento empurrá-lo. Certa noite, na hora de dormir, ficou de pé no batente e brincou de abraçar as brisas que dançavam e nisso deu um falso passo. A queda foi brusca, mas qual não foi sua surpresa ao ver que logo parou — muito acima do chão! Aí sentiu-se subir, montado num vento maroto, em direção às nuvens. Percebeu que estava indo para o céu. “Como vou saber quando chegar lá?”, pensou alto. “Quando sentir um cheiro doce. São suspiros de nuvens!”, falou meio sem pensar uma gaivota que observava curiosa aquele estranho pássaro de penugem morena, cabelos enrolados e nariz redondinho. “São sempre três camadas de nuvens: as açucaradas vêm embaixo, são suspiros; depois, as felpudas, com que fazem edredons; lá em cima, os algodões molhados, que espremem chuva”, comentou a gaivota displicentemente. Realmente, foi fácil. E passou rápido! Quando olhou para baixo, as primeiras nuvens já boiavam no mar azul, marshmellows numa sopa de anil, espelhando o céu vaidoso. Cansado de andar, o Sol pulava pra trás das montanhas; e o Horizonte, despedindo-se do amigo de brincadeiras luminosas, chorava (como toda tardinha) um rio que descia pela face da terra, na expectativa de dias melhores no verão. O último raio deu adeus, apagando a luz e fechando a porta celeste. Só aí Miro viu que as estrelas já forravam de sonhos a cama da noite que chegava. Estava intrigado por uma estrela cadente quando ouviu uma voz fanhosa: “Se a noite dorme sem sua coberta de nuvens, uma estrela cai na cama de cada menininho e ele sonha que é astronauta e jogador de futebol num campinho da Lua”, explicou uma velha e sábia cegonha. “Antes que você pergunte, eu não entrego bebezinhos”, disse. “Eu sei que não!”, indignou-se Miro. “Não sou criança! Sei muito bem que os bebês nascem de uma sementinha!”. A cegonha apenas sorriu, dizendo: “Não acha que já passeou muito?”. Puxando Miro pelo braço, levou-o até umas cúmulos-nimbos que choramingavam chuvosas pelos cantos do céu: “Deite aí e cuidado pra não molhar a cama!”. Como todo menino, Miro resistiu por cerca de dois minutos e depois adormeceu profundamente. A cegonha pediu então a uns morcegos-taxistas (que têm ótimo senso de direção) que rebocassem a nuvem-cama de volta até sua janela, e ele sonhando luzinhas pelo caminho. Pela manhã, Miro acordou lembrando a noite estrelada que passou: “Como seria bom ter ido ao céu!”. Mas sua mãe, ocupada na eterna tarefa maternal de fazer as coisas que não terminam, entrou no quarto com uma vassoura, varrendo e reclamando alto: “Menino, se você espalhar algodão pelo quarto de novo, apanha, ouviu!?”. Miro apenas sorriu.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Da Morte

A morte é um tópico sinistro e impopular, e talvez por isso mesmo algumas pessoas venham a dizer que ela me cai bem enquanto tema. Embora esteja presente desde o início da vida neste planeta, a morte é considerada como algo mórbido, não natural e, por incrível que pareça, até inesperado. Pode ser mais um daqueles casos de coisas que são temidas porque não são entendidas. Bom, obviamente não sou eu quem vai esclarecê-la, até porque ela em si não contém mistérios: eles querem saber o que vem depois. Ocorre que o ser humano é notoriamente relutante em conceber sua finitude concreta e ambicioso nas suas pretensões abstratas. Mesmo aos mais entusiastas da vida, eu diria que a morte, para usar uma expressão tomada de empréstimo, é um grande momento, faz parte de cada vida. Parece um paradoxo, mas não é. Não se pode negar que o fenômeno da morte só é equiparado em magnitude e essência pelo nascimento. Sem a morte como fim, a própria filosofia do carpe diem não faria sentido. Se a vida não tivesse fim, a forma como vivemos não teria a menor importância. A morte é o motor para que façamos as coisas no tempo que não temos, e não no tempo apropriado. Por causa dela é que vivemos enquanto, em vez de quando. Na filosofia de vida moderna, no entanto, é como se a morte não tivesse lugar na vida — embora o tenha de fato e de direito, pois toda história de vida inclui uma história de morte: trágica, reconfortante, inexplicável, melancólica, dolorosa, pacífica ou violenta. Tudo isso, sim. Mas… inesperada? Como se falar da morte como algo inesperado em se tratando de um ser vivo? Somente estando sob a áurea de uma filosofia que ignora a morte na maior parte do tempo. Fechamos nossos olhos para a quantidade de seres que morrem para que possamos viver — não somente animais, mas microorganismos, plantas e pessoas. Pessoas que morrem lentamente numa mina de carvão, num escritório ou numa cozinha. Todos morremos lentamente no trabalho, na criação dos filhos, no esforço da convivência, no que, curiosamente, chamamos de viver. É apenas uma forma de ver as coisas, mas é essa visão que se tem olhando a vida de trás para frente. Por que olhar assim? Desse ponto de vista, coisas que pareciam importantes não fazem sentido, e outras ganham significação muito maior. Por outro lado, talvez ignorar a morte seja justamente o que possibilita a “vida produtiva” como é entendida hoje. Vale refletir. Enfim, compactuando das dicotomias e oposições tão caras à compreensão humana do mundo, façamos jus: é pela morte que definimos a vida, e vice-versa. Se não soubéssemos o que é morrer, talvez jamais soubéssemos o que é viver.

terça-feira, 23 de março de 2010

Pequenos Deuses

Uma mãe olha profundamente. Na outra ponta desse olhar, uma criança descansa plácida, como sempre fazia após um dia inteiro de cansativas travessias entre mundos imaginários. A mão da mulher repousa sobre o peito da menininha, eletrificando a ligação mística e ancestral dos animais com seus filhotes. Fecha os olhos e sente o cheiro de lírio do ambiente potencializado pelo lítio que corre nos seus humores. Os cabelinhos viçosos resfolegam energia, saúde e felicidade. A mãe tenta entender como aquele pequeno ser, com todos os seus desmandos e malcriações, faz com que sua vida faça sentido. Que mistério carregam as crianças em sua disposição infinita para a vida? Essa vida que se esfumaça ao passar dos anos, no processo de cauterização do corpo. A velhice, não há dúvida, é o processo de imortalização do humano: a solidificação de suas articulações, ressecamento dos músculos… é transformação do homem em estátua. Depois, essa rocha se desagrega em pedaços cada vez menores até que ele viva para sempre no nível atômico — o pó. Mas a menininha era o oposto disso, suas mãos mínimas tinham o poder de criar castelos enormes de areia ou destruir civilizações inteiras de formigas. Gatos e cachorros estão sempre aturdidos diante da intrepidez infantil, sem reação, tentando compreender a coragem de agarrá-los como a pelúcias inofensivas. Suas pernas são tornados em miniatura na devastação das plantações de margaridas. A criança é mesmo um pequeno deus das coisas da terra. Essa divindade telúrica se despedaça, porém, diante da água: o elemento vital desbarata seus poderes, manipulando-a qual peão inerte nos dedos ágeis das ondas, nos braços fortes das correntezas. Para esses pequenos deuses, a água é a morte. Enquanto pensava nisso, a mãe sente um suave toque no ombro. Era hora de ir. Sem derramar uma lágrima, num ressequido protesto contra os mares do mundo, ela se debruça sobre aquele pequeno corpo para dar-lhe seu derradeiro e mais tenro beijo de boa-noite.

terça-feira, 2 de março de 2010

Um aviador irlandês antevê sua morte

William Butler Yeats (1865-1939) [Tradução: Heber Costa]

Sei que encontrarei meu destino
Por entre nuvens, em lugar incerto.
Aqueles que defendo, não estimo;
Aqueles que combato, não detesto.
Minha pátria é Kiltartan Cross*,
Seu pobre, meu compatriota;
Desfecho algum lhe será atroz
Ou trará felicidade digna de nota.
Nem dever nem lei me fizeram combater
Nem políticos, nem multidão clamorosa,
Foi apenas um solitário impulso de prazer
Que me levou às nuvens em polvorosa.
Tenho em mente tudo isto ponderado:
O tempo porvir é fôlego desperdiçado à sorte,
E desperdício também o tempo passado.
Então, no equilíbrio desta vida, esta morte.


An Irish airman foresees his death

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan’s poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.
Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public man, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

* Local histórico em Kiltartan (Cenél Áeda na hEchtge, em gaélico), oeste da Irlanda, onde viveu Yeats, que tomou parte no resgate da cultura celta.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O Dia das Trevas


Lembro que vivíamos numa casa velha e, embora fosse o mundo para mim, era reconhecidamente humilde e pequena até para os padrões já baixos do bairro pobre em que morávamos. Alheio a tudo, eu não via que minha mãe, com a garganta presa pelo nó do silêncio, sofria um sentimento mudo de solidão. Seu sorriso era raro e só se abria quando raios do sol entravam em prisma pela janela e caíam coloridos sobre mim, contrastando com a pele negra, que reluzia seu brilho fascinante e esquecido. Enternecida pela sua solitária condição não apenas de mãe, mas de mulher, ela me abraçava; eu, sem entender, apenas me sentia mais protegido. Somente outra coisa a fazia sorrir: a chegada daquele homem. Era um homem branco e alto, com cheiro forte de riqueza. Entrava em casa com estirpe de dono, passava diretamente pela sala e conduzia minha mãe para o quarto. Ignorado e ignorando, eu brincava com meus caubóis de plástico no velho oeste daquele chão poeirento e na savana do carpete sujo. Com o cair da tarde, o abandono do sol e o desinteresse das brincadeiras, pesava sobre mim um sentimento estranho, uma miséria que brotava das minhas roupas desbotadas e entrava pelos poros, virando outra miséria, mais profunda. Era como uma febre que anunciava sua chegada, uma moleza de espírito, um arrependimento de algo que não fiz. Por isso, eu temia aquele homem: era o dia em que as luzes tardavam em se acender. Toda semana, era o Dia das Trevas. Na penumbra, eu divisava vultos ameaçadores — alguns eram ratos; outros, tenho certeza, demônios. O desespero endurecia minhas pernas. Nada podia fazer. Sem ter ao que me agarrar, deixava correrem as silenciosas lágrimas do medo, salgadas de abandono. Quando já tinha passado o limite do insuportável, entre a vida e o pesadelo, as luzes se acendiam e o homem ia embora. Minha mãe vinha até mim, coberta num véu de culpa, e tentava me consolar com biscoitos amanteigados. Enquanto eu mordiscava, ela novamente dava à luz aquelas palavras bastardas: “Papai não pode ficar. Ele tem outra família, meu filho”. Palavras refletidas num espelho distorcido, mais para si própria do que para mim. Só anos depois, compreendi o que significavam quase todos aqueles vocábulos que não eram filhos da boca com o coração. Exceto aquele que sempre me foi estranho: papai.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Beraldo (ou Contra o Romantismo)

Abelardo era um desses velhos que parecem com todos os velhos: lento, baixo e magro, quase franzino, isso mesmo, de pele franzindo eternamente a testa com um abuso do mundo de hoje. Reclamava das mesmas coisas, de como fazia frio num calorão, que a televisão estava sempre baixa nesse volume máximo. Enfim, era um idoso feliz e resmungão, ou seja, comum. Mas ele tinha alguma coisa de especial… mentira, não tinha nada. Era comum mesmo. Seria mais fácil contar essa história se ele fosse um ex-astronauta, lutador de boxe aposentado, mas ele não era. A vida toda foi coveiro. Não, ele não tinha histórias de fantasma pra contar. Em 45 anos de profissão, nunca ouviu um uivo estranho nem viu vulto dando volta no cemitério. Fazer o quê. Seus olhos não brilhavam de uma juventude incendiária, e seu espírito não era de criança. A saúde também não era lá essas coisas: uma tosse escapava aqui, uma dor nas costas acolá. Não namorou muito quando jovem, aliás não era muito bonito… nem feio. Com isso, nunca teve fama de garanhão quando garoto, e já havia uns bons (ou maus) quinze anos que não sabia nada de sexo. Beraldo, como o chamavam, trocando as letras, não tinha filhos. Só um gato caolho, apelidado Tirano. Beraldo, meus caros, era isso mesmo: uma coleção de nãos. Mas houve um dia, há muito tempo, ele ganhou um sim que coloriu seus nãos. Lenira. Um amor manso, que andava de mãos dadas pelo parque e comia bolinhos de sossego assistindo TV. Para ela, Beraldo boxeou contra Ali num ringue em plena lua (e ganhou!). Divertia-a com os causos de cemitério que contava, repetidamente, nos jantares sem luz de velas, sem rosas — cozido de carne com legumes era seu favorito. Suas pequenas mentiras ingênuas que lhe pescavam sorrisos, seus braços fracos que trabalhavam forte, seus olhos silenciosos: Beraldo não era especial, mas Lenira o amou por toda a vida. E a vida, leitores, não é um mero romance.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Átomo


Às vezes, quando deito à noite, recebo uma visita furtiva. É uma solidão errante que passava na minha porta e decidiu entrar. Uma urticária que uiva muda, moendo amiúde minha vontade de ser. Em noites como esta, com pesadelos de solidão acordada, acabo sempre vomitando preto num papel — não por vaidade, mas por uma agonia de dormir. Descobrir que se está, na verdade, sozinho é como estar exilado de todos, expatriado dos seus, como morar longe de si. No diametralmente oposto ao divino, estou eu — última instância do mundo. O quarto é só a cela oca, prisão e celeiro de pensamentos que turbilham afogadiços, em ondas acéfalas de consciência. Suas águas turbas se curvam sobre mim, e as engulo num soluço seco: é a revelação última de que, para além das moléculas de pessoas, há apenas eu, átomo.