sábado, 17 de julho de 2010

Diário de um Soldado


É quase hora, meu amor. O trovão anuncia a chuva de chumbo que escurecerá o sol antes de nos lançarmos sob a sombra da morte deste vale. Estas páginas ensebadas, por desprezo ou desgosto, resistem ao lápis rombudo que registra o inexprimível com letras desfocadas. Um diário que não conhece dias neste limbo cinzento situado entre o tempo, a vida e a morte. Aqui, tudo é espera… até que não seja mais. É quase hora, e juntos estamos todos sozinhos nesta nossa terra de ninguém. Nós estamos nas covas. Lá fora, descansam em paz as crianças da guerra, ocultas sob a mortalha da neblina. Como marionetes imóveis dependurados em arames farpados ou amontoados nos maus lençóis de uma cruel isonomia, dormem bravos e covardes, intelectuais e operários, crentes e ateus, heróis e bandidos. É quase hora, e os corvos bicam os olhos que já não serviam mais. Eu vi esses olhos foscos de exaustão eterna, aguardando somente o dilatar das pupilas: janelas abertas da alma que voa embora para a escuridão, cansada de desesperança. Olhamos e olhamos, mas não há nada nesta terra encharcada de sangue e chuva que se pareça com futuro. Só nos resta, então, o presente que nos deram. Aqui, jazemos. Sem glória, sem bandeira, sem lágrimas. É quase hora, e os mortos que ainda vivem se levantam mecanicamente de armas em punho, há muito esquecidos do que teria sido o desespero. Rufam os canhões. Calamos nossas baionetas cegas. Minha mente vazia inunda-se de memórias da tua imagem liquefeita, uma aquarela difusa de tuas maravilhosas insignificâncias cotidianas e dos subestimados prazeres de podar roseiras e alimentar bichos. Silêncio. Lembro-me claramente do teu beijo de boas-vindas que nunca aconteceu, o primeiro depois do último. É hora.

4 comentários:

Malthus disse...

"Soldier boy, made of clay
Now an empty shell
Twenty one, only son
but he served us well
Bred to kill, not to care
Do just as we say
Finished here, Greeting Death
He's yours to take away"
Metallica, Disposable Heroe

Andrea disse...

Um dos mais tristes que vc escreveu e por esse motivo um dos que eu mais gostei!
Muito lindo!

Tempo Temporã disse...

cinza escuro, meio chumbo.
denso.

Cristovam disse...

Às vezes, durante a minha infância, ouvia longas narrativas do meu pai, em torno da participação dele no teatro real das operações de combates durante a Segunda Guerra Mundial...O pelotão de que fazia parte tinha a missão de capturar o inimigo vivo...
O seu texto é ótimo, uma peça bem elaborada...