terça-feira, 29 de novembro de 2011

Eu, Menino


Quando eu, menino, via o mundo lusco-fusco num branco extremo, acreditava no bem, no ser inerentemente bondoso que a sociedade corrompia, nunca alienado do benefício da dúvida. Quando menino, o terror do eu-erro acometia silencioso meu sono, um medo divino do lado lascivo das ideias, os dogmas devorando as estranhas entranhadas nas convicções. Quando eu rebrilhava os olhos no verde-fascínio de um besouro morto, pernas espinhosas fustigando a curiosidade de um menino com enigmas, crescia onírico e aventureiro. Quando o menino se chocava contra a sólida rudeza dos gestos infames, eu mortificado culpava a casca frágil da minha ingenuidade e despertava o germe inerte da intolerância transvestida de sobrevivência. Quando viu na grandeza de Júpiter sua pequenez agigantar-se, o menino-eu imaginou-se domando todas as questões bravias do universo se lhe dessem um só desejo. Quando o menino triturado pela puberdade rejuntou seus átomos no eu, foi infiltrado pela crônica ausência de lógica e agora a vida separava seus prótons de seus elétrons com vazio da certeza do caos. Quando eu, vestido capa-espada, ofereci o cavalo branco da abnegação, vi o menino destronado pelo escárnio ingrato do desprezo. Quando a névoa da guerra diária gradualmente dissipou-se na tempestade dos tempos, vi em assepsia medonha meu corpo despido e lavado do eu, menino.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Esquecimento

Esta senhora mantém uma rotina todos os dias. Acorda e joga por cima dos ombros as flores do xale, espalhando um perfume antigo. Vai ao quarto do filho, passa a mão por sobre a colcha já forrada aplainando quaisquer imperfeições como quem pede desculpas ao silêncio, como quem limpa uma memória de suas tristezas. Arruma uns lápis de cor que o rapaz nem usa mais tentando manter intacta uma infância que se foi de mãos dadas com a crueza da necessidade. Na sala, troca por outras novas as margaridas que já começam a perder do viço. Há algo que a perturba naquelas pétalas enrugadas e enegrecidas, intempéries de uma vida que andou demais na má companhia do tempo. E assim, por alguma brecha entre as grades dos afazeres de casa, todas as tardes o dia escapa despercebido, carregado pedacinho por pedacinho pelos fótons do último raio que o sol lhe jogou — último como todo raio e todo instante sempre é. É por volta desse horário que a senhora remexe a panela com a réstia de vigor que as mães usam à tardinha para se recomporem quando as chaves começam a chamar na porta da frente. E esta senhora não é diferente. Então, ela coloca dois pratos na mesa e espera pacientemente. Hoje, porém, há algo errado. Hoje, pela primeira vez, essa senhora colocou apenas um prato na mesa. Ela nunca havia esquecido. Um ano, dois meses e doze dias. Ela nunca havia esquecido. O rapaz não senta mais naquela cadeira para a qual ela agora olha fixamente, num misto de culpa e indiferença. O lugar vazio, onde sentava aquela morte que amanhecia todos os dias, foi ocupado pelo esquecimento, que entrou sorrateiro pela porta aberta da rotina. Hoje a vida descobriu que a morte vive apenas na lembrança. Hoje uma senhora descobriu que a morte nada mais é que o primeiro passo da lembrança rumo ao esquecimento.

domingo, 21 de agosto de 2011

O Sorteio

de Shirley Jackson (1916-1965)
(Tradução de Heber Costa)

A manhã do dia 27 de junho estava clara e ensolarada, com a frescura quente desses dias de verão; as flores desabrochavam aos montes, e a grama rebrilhava de tão verde. O povo do vilarejo começou a se ajuntar na praça, entre o correio e o banco, por volta das dez; em algumas vilas, tinha tanta gente que o sorteio levava dois dias para terminar e tinha que começar logo no dia 2 de junho, mas nessa, que tinha somente umas trezentas pessoas, o sorteio acabava em menos de duas horas, daí que, se começasse às dez da manhã, ainda dava para os moradores chegarem em casa a tempo para o almoço.

As crianças, é claro, se aglomeraram antes de todo mundo. A escola tinha fechado para o recesso do meio do ano. Quase todas estavam com uma agoniada sensação de liberdade. A tendência era chegarem caladinhas, ficando assim por um tempo, para depois começarem com algazarra. A conversa ainda era da escola e da professora, dos livros e dos carões que levaram. Betinho Martins já tinha enchido seus bolsos de pedras, e os outros meninos logo fizeram o mesmo, escolhendo as mais lisas e redondas. Beto e Ari de Jenésio e Dico de François — que o povo dizia “Franssóis” — acabaram juntando uma pilha bem grande de pedras num canto da praça e protegiam ela das botadas dos outros meninos. As meninas ficavam meio de lado, proseando umas com as outras, olhando os meninos por cima dos ombros. As crianças pequenininhas embolavam na poeira ou então seguravam na mão do irmão mais velho.

Pouco tempo depois, começaram a chegar os homens, cada um de olho nos seus filhos, falando de plantação e chuva, de tratores e dos impostos. Ficavam juntos, longe da pilha de pedras que estava no canto; suas piadas eram discretas, e eles mais sorriam do que riam. As mulheres, com seus vestidos de casa desbotados, chegaram pouco depois dos homens. Elas se cumprimentavam e fofocavam um pouco antes de irem para junto do marido. Daí a pouco, já perto dos homens, começaram a chamar os filhos, e eles vinham fazendo birra, depois de serem chamados quatro ou cinco vezes. Betinho Martins deu uma cabriola e escapou da mãe, que tentava pegar ele com a mão esticada, e voltou para a pilha de pedras. O pai ralhou com ele, e Betinho veio correndo e ficou no lugar dele, entre o pai e o irmão mais velho.

Quem organizava o sorteio — assim como as danças no arraial, o clube dos jovens e a quermesse — era Seu Samuel, o único que tinha tempo e energia para cuidar das atividades cívicas. Era um sujeito bonachão e jovial que tinha um negócio de carvoaria. As pessoas tinham pena dele porque não tinha filhos e a mulher lhe aporrinhava o juízo. Quando ele chegou na praça, carregando a caixa preta de madeira e acenando e falando, o burburinho aumentou entre os moradores. “Um tiquinho atrasado hoje, compadres.” O responsável pelos correios, Seu Geraldo, seguia de perto levando um tamborete de três pernas. Ele colocou no meio da praça, e Seu Samuel colocou a caixa preta em cima. Os moradores ficavam meio distantes, deixando um espaço entre eles e o tamborete. Quando Seu Samuel perguntou “Algum compadre pode dar uma mão aqui?”, o pessoal ficou meio ressabiado, até que dois homens, Seu Martins e o filho mais velho, Jessé, vieram segurar a caixa enquanto Seu Samuel remexia os papéis que estavam dentro.

[...]

Para ler a continuação, clique aqui.


Para o ler o texto-fonte em inglês, clique aqui.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Trecho de "O Som e a Fúria"

O Som e a Fúria (1929), de William Faulkner
(Excerto da página 76, tradução de Heber Costa)


Dois de junho de 1910.

Quando a sombra dos caixilhos aparecia nas cortinas, eram entre sete e oito horas e aí eu estava novamente imerso no tempo, ouvindo o relógio. Foi de Avô e quando Pai o deu para mim ele disse eu lhe dou o mausoléu de toda esperança e desejo; é deveras apropriado que você o use para se apoderar do reducto absurdum de toda experiência humana, que será de tão pouca utilidade para suas necessidades individuais quanto o foi para ele e para o pai dele. Eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que você o esqueça aqui e ali por alguns momentos e não despenda todo seu fôlego tentando vencê-lo. Pois batalha alguma é vencida ele disse. Nem sequer se chega a travá-las. O campo de batalha revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão dos filósofos e dos tolos.

__________


The Sound and The Fury (1929), by William Faulkner
(Excerpt from page 76)

June second, 1910.

When the shadow of the sash appeared on the curtains it was between seven and eight oclock and then I was in time again, hearing the watch. It was Grandfather’s and when Father gave it to me he said I give you the mausoleum of all hope and desire; it’s rather excruciatingly apt that you will use it to gain the reducto absurdum of all human experience which can fit your individual needs no better than it fitted his or his father’s. I give it to you not that you may remember time, but that you might forget it now and then for a moment and not spend all your breath trying to conquer it. Because no battle is ever won he said. They are not even fought. The field only reveals to man his own folly and despair, and victory is an illusion of philosophers and fools.

domingo, 3 de julho de 2011

De um Poeta para sua Amada

William Butler Yeats (1865-1939)
tradução de Heber Costa dedicada a Andréa Veruska, em seu aniversário.


Trago-te com reverentes mãos postas
livros de meus inúmeros sonhos,
Mulher alva pela paixão cinzelada
como maré burila grisalhas encostas
E de alma mais sofrida que espada
Forjada no brando fogo do tempo:
Mulher alva de inúmeros sonhos,
Trago-te rimas de meu amor sedento.


* * *

A Poet To His Beloved
William Butler Yeats (1865-1939)

I bring you with reverent hands
The books of my numberless dreams,
White woman that passion has worn
As the tide wears the dove-grey sands,
And with heart more old than the horn
That is brimmed from the pale fire of time:
White woman with numberless dreams,
I bring you my passionate rhyme.


NOTA: A Poet to His Beloved foi publicado na coletânea The Wind Among the Reeds (1899). Este poema é uma declaração lírica (e um dos pedidos de casamento) à atriz Maud Gonne, a quem o Yeats confessadamente amou por anos. Embora tenham tido um relacionamento tardio, nunca se casaram (fonte).

sábado, 4 de junho de 2011

Jonas e o Menino

Jonas sentia um cansaço. Cansaço de acordar do descanso pra viver outro dia de novo. As coisas não iam bem. Cada esperança de melhorar morria de parto quando vinha à luz mais um sofrido não, rebento do nunca. A mulher morrera sem aviso nem motivo, condenada pela injustiça ao cruzar caminho com uma bala leviana de uma briga de trânsito. Deixou-lhe o menino, aquele franzino que pesava mais que uma vida. Desde então, Jonas sacrificava o que nunca chegou a ter para prover do bom e do menos pior ao filho. O caminho era duro, mas pra ele a vida não tinha atalho: faltava-lhe malícia e talento pra malandragem. Não que lhe faltasse vontade. Na hora de enrolar, engasgava-se com as mentiras, que lhe saíam sempre cuspidas e maculadas de sinceridade. Não levava jeito pra jeitinho, não sabia ser sabido. Jonas era honesto por falta de opção. Mas esse atributo raro e inato não pagava as contas. O menino queria, o menino pedia, desprovido da capacidade de prever futuros negros. Alimentado de meio copo de leite tipo C e uma porção bem servida de televisão, o menino abstraía-se enquanto ele trabalhava. Na falta de alguém de confiança, deixava-o trancado com o vira-lata, brincando com torrões da areia e tijolos velhos — restos inaproveitáveis de uma reforma um dia sonhada. Chegava perto das seis, esperando encontrar vida na casa. Achava o menino cheirando a cachorro e com cara de sessão da tarde. Nada que sabão amarelo não resolvesse. Jonas lavava bem sua cabeça, e a culpa descia quase toda pelo ralo. Um dia, uma vizinha rica fez uma denúncia contra aquele absurdo e funcionou: finalmente recolheram o cãozinho ao canil, estupefatos com a violação aos direitos dos animais. Enquanto isso, menino se afeiçoava à solidão, ao silêncio e à penumbra. Andava com desenvoltura sob a venda das sombras, mas se assustava quando a luz acendia. Jonas chegava intruso nesse cenário, constrangido pelos ouvidos das paredes não conseguir dedicar suas já parcas palavras ao menino. Nessa noite, nada tinha mesmo de bom a dizer. Não tinha mais emprego, não mais-valia. No dia seguinte, saiu a ermo com o menino pela mão. Parou numa banca, comprou um badulaque pro menino e pediu ao jornaleiro que o olhasse enquanto ia ao açougue do lado. Nunca mais voltou. No fundo dos olhos, não se via surpresa ou confusão: o menino já sabia. Não havia estranheza no abandono.

domingo, 15 de maio de 2011

Os Cegos e o Elefante



John Godfrey Saxe (1816-1887)

(tradução de Heber Costa)


Seis homens do Hindustão
Mui devotos da cultura
Foram ver o Elefante
(Inda que de vista escura)
Cada qual, observando,
Queria uma verdade pura.

O Primeiro se aprochegou,
Mas, tropeçando numa galha,
Deu com largo e duro flanco
e grasnou como uma gralha:
“Valha-me, deus! O Elefante
É uma espécie de muralha!”

O Segundo, sentindo a presa,
Proclamou com confiança:
“Liso, pontudo e robusto assim,
Tenho plena segurança:
O tão famigerado Elefante
É uma espécie de lança!”

O Terceiro chegou ao animal
E, pegando por acidente
A úmida tromba nas mãos,
Exclamou, incontinente:
“Na minha visão, esse Elefante
É uma espécie de serpente!”

O Quarto esticou a mão ansiosa
E sentiu o joelho de pronto.
“A natureza desta fera mágica,
Neste momento vos conto:
Sem sombra de dúvida, o Elefante
É uma espécie de tronco!”

O Quinto acaso tocou a orelha
E disse “Até um cego insano
Diria a resposta sem titubeio;
Não há perigo de engano:
Este prodigioso Elefante
É uma espécie de abano!”

O Sexto mal tinha começado
A fazer na fera o exame,
Quando, a cauda agarrando,
Anunciou como a um ditame:
“Asseguro que o Elefante
É uma espécie de cordame!”

Assim tais homens hindustanos
Discutiam duro todo dia,
Cada qual que opinasse
Com mais sanha e selvageria.
Inda que em parte certos,
Nenhum a verdade sabia!

MORAL.
N’alguns embates teológicos,
Cada debatedor insensato
Prosa em pura ignorância
Do que diz o outro incauto
Tagarelando de um Elefante
Que ninguém viu de fato!

***

Para ler o poema em inglês, clique aqui.

Para ouvir uma versão recitada, clique aqui.

Para ouvir uma versão musicada, clique aqui.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Menina no Sinal

Uma menininha no sinal. Os cabelos crispados crescendo eletricamente começam num castanho imaculado e terminam em pontas de cores corrompidas pelo esmaecimento do sol-a-sol. A alguns metros, com um olhar tirânico destroçado pela vida, resta sentada à sombra sua imagem futura, aquela que a pariu no passado e agora vigia o seu presente. Seu destino é regido por uma lógica distinta das associações comuns: o verde significa espera, e o vermelho é a cor da esperança. Vermelho! Corpo magrinho, ela perambula entre os veículos com uma caixa de mentos. A menininha fede. Olhares jogam contra ela um desprezo desinfetante. Verde! Brincadeira involuntária de estátua na beira da calçada. A carinha tem vestígios da sopa aguada de ontem que as moscas disputam sofregamente. Olha para si. A camiseta-pano-de-chão sobra na sua silhueta: é o mais próximo que ela vai chegar de um vestido. Mas ela não pensa nisso. Puxando pelos lados, faz uma saia de pastoril. Seu corpo gira, pezinhos espalmados no chão. Dá pequenos pulos para não expor o sexo que lhe foi apresentado tão cedo, à revelia de sua compreensão. Fecha os olhos sob um sol de holofote e deixa-se rodopiar ao som bruto dos carros que passam. Vermelho! A entidade que se denomina mãe, embora quase imaterna, solta um grunhido. No susto, ela corre de volta para os carros, ofertando seu precário futuro aos condutores que a ignoram. Uma vez perdida, alguém sorri para ela e lhe estende uma moeda. A menininha gosta das prateadas mais do que das douradas, embora saiba que estas compram mais. Seu meio-sorriso denuncia a satisfação que escapa por entre os poucos dentes. Verde! A mão lhe toma a moeda, mas ela não fica mais triste como antes. Coloca o dedo na boca e chupa o salgado da fuligem e do suor. Limpa na camisa enquanto procura com os olhos secos pelo papelão em que ela deita por dez minutos na hora do almoço. Queria mesmo era ser uma criança pobre de novela, que usa roupa limpa, dorme numa cama só dela e tem uma mãe que faz carinho. Vermelho! Corre por entre os carros saltitando para não queimar os pés no asfalto fumegante. Ela sabe que é quase hora do almoço pela quentura do chão. Viu um pão na sacola verde... será para ela? Verde! A menininha não gosta de dormir no carpete-que-virou-chão enquanto a mãe fica gemendo com o homem. Não tem cortina. Ela vira para o lado oposto e cobre os ouvidos sem sucesso. Também não gosta quando o homem pega nela. Parece querer achar curvas naquele corpo reto. Sente uma angústia, como quem esconde um malfeito. Tem medo de apanhar da mãe. Vermelho! Ela corre — tropeça e derruba na lama preta a mercadoria... o papel da embalagem encharca rápido, ficando negro como o medo que lhe percorre a espinha. Enfia a mão na sarjeta, no desespero de não perder nada, e vai jogando o lodo mentolado na camisa que segura à guisa de bolso. Levanta e vai na direção da mãe com a resignação dos condenados. Antes que diga qualquer palavra, leva dois tapas firmes na cara engatados com meia-dúzia de palavrões. Mas uma coisa mais dolorosa lhe vem à mente: não vai ter almoço hoje. O formigamento do rosto faz com que ela nem sinta as lágrimas descendo sem freios. Verde! Os carros começam a passar em velocidade. A menininha corre mais uma última vez e joga-se na frente. Não, não foi isso que aconteceu. Vermelho! Ela pega as balinhas que conseguiu salvar, limpa com a camisa, coloca na caixa e, de novo, vai oferecer ao desprezo.

domingo, 10 de abril de 2011

Uma Árvore Venenosa

William Blake (1757-1827) (Tradução de Heber Costa)

Meu amigo fez uma raiva a mim;
Contei-lhe, e a raiva teve um fim.
Enfureceu-me meu inimigo:
Não contei, a raiva cresceu comigo.

Encharquei-a de lástimas,
Noite e dia com minhas lágrimas:
E solarizei com sorrisos
E com suaves ardis invisos.

E crescia mais a cada manhã
Até que deu brilhosa maçã.
Meu inimigo a fitava, pois luzia,
E a fruta era minha, ele sabia.

Entrou no meu jardim amoitado
Quando a noite ocultou o cercado.
Na alvorada, eu vi com satisfação
Sob a árvore, o inimigo estirado no chão.


A Poison Tree

I was angry with my friend;
I told my wrath, my wrath did end.
I was angry with my foe:
I told it not, my wrath did grow.

And I waterd it in fears,
Night & morning with my tears:
And I sunned it with smiles,
And with soft deceitful wiles.

And it grew both day and night,
Till it bore an apple bright.
And my foe beheld it shine,
And he knew that it was mine.

And into my garden stole.
When the night had veiled the pole;
In the morning glad I see,
My foe outstretchd beneath the tree.

domingo, 3 de abril de 2011

Bloqueio criativo

O cenário era propício. Aquele velho escritor sempre criava uma atmosfera para começar a escrever. Era um jazz encorpado e um vinho tinto harmônico dançando enebriantemente até que a ideia chegava, atrasada e meio bêbada, como sempre. Havia qualquer coisa de semelhante entre aquele homem na penumbra e aquela abelha rondando a lâmpada do teto na esperança de chegar a uma luz. À sua frente o branco insuportável de uma página vazia no computador iluminava o rosto impassível dos que não conseguem mais escrever. Fazia tempo que o escritor recorria a artifícios para dar conta da fome insaciável dos leitores pela mítica inspiração. Afinal, o que é a inspiração senão um esforço para digerir a realidade e regurgitá-la com algo de si? Havia algum tempo que cansara de fingir. Alguns acham que o escritor finge para a sociedade e se revela à literatura. Mas ele sentia que nunca havia parado de se inventar e o que inventava, na maioria das vezes, pouco tem a ver consigo próprio. Alguns críticos com mais vocação para biógrafo (se é que há algum dom que contemple essa profissão parasitária) e um gosto mórbido por adivinhas haviam esquadrinhado sua obra buscando descobrir porque ele usava chapéu até em ambientes fechados ou de que lado da cama ele dormia. Parece que tudo isso era mais importante que a mera literatura das suas palavras impressas. Esse homem tinha atingido um estágio em que a crítica tal como se pressupunha não mais existia para ele: ter seu nome assinado no fim da página significava ou a aprovação ou a rejeição absolutas. A leitura das palavras em si se tornara nada mais que formalidade, confirmação inócua de conceitos petrificados — positivos ou negativos — a respeito dele. Pode existir algo mais triste para um escritor do que ignorarem suas palavras? Não havia mais sentido em escrever, mas uma náusea profunda o obrigava. Há tempos queria ver-se liberto disso, desse gozo aflitivo, dessa ânsia prazerosa, que sobrevinha quando seus dedos uniam as letras desnaturadamente separadas no teclado. Deixara tudo na vida pela escritura: família, amigos, mulheres. Suas obras lhe deram sua fama, e sua fama lhe deu um tudo com gosto de nada. Foi com esse gosto que acordou naquela manhã e quando sentou-se insosso na mesma cadeira. Agora, junto com o crepúsculo, caiu sobre ele um alívio na forma de um bloqueio criativo. Aquele rosto imóvel e pálido desde as primeiras horas da manhã trazia uma revelação: um escritor liberto da literatura pelo último bloqueio de sua vida.

domingo, 27 de março de 2011

In Memoriam

Alfred, Lord Tennyson (1809-1892) (Tradução de Heber Costa)

Seção V

Por vezes julgo coisa meio impura
Expor em palavras o meu pesar:
Pois pr’a alma abrir ou ocultar
É falha a palavra como a natura.

Para mente e coração aflitos porém,
Há serventia na linguagem comedida;
Este exercício de mecânica sofrida,
Como torpe narcótico, a dor sustém.

Em palavras me enrolo, como panos de luto,
Como em rudes roupas contra friagem;
Mas de minha imensa dor elas perfazem
Não mais que um contorno diminuto.


Section V

I sometimes hold it half a sin
To put in words the grief I feel:
For words, like Nature, half reveal
And half conceal the Soul within.

But, for the unquiet heart and brain,
A use in measured language lies;
The sad mechanic exercise,
Like dull narcotics, numbing pain.

In words, like weeds, I'll wrap me o'er,
Like coarsest clothes against the cold;
But that large grief which these enfold
Is given outline and no more.

domingo, 20 de março de 2011

Eterno Fim

No jantar, ela serviu mais uma vez silêncio e novela das sete. Havia algo estranho no seu rosto, algo de gélido nas meias-mentiras daquele prato sem gosto. Ele sabia que o fim aguardava do lado de fora da porta, mas não como havia chegado até ali. Foi assim, de uma hora pra outra, que percebeu: suas surpreendentes rosas deram lugar a samambaias dependuradas na rotina do terraço. Aquele ex-amor se agarrava na autoafirmação da estabilidade para justificar seu fim — a relação estável sempre se pretende uma forma leviana de eterno e esbarra aqui e ali na covardia. Pensando nisso, entrou no quarto. O fingimento dormia ainda acordada do lado esquerdo. De propósito, sentou-se pesadamente na cama e remexeu badulaques barulhentos no criado-mudo. Nenhuma resposta. Murmurou o nome dela num tom que hesitava entre a pergunta retórica e a súplica. Falou como quem repete uma palavra que subitamente lhe parece estranha, tentando reconhecê-la. Aquele nome não passava de letras, anagrama sem nexo do que antes fora a senha sagrada para imolar seu coração. Deitou-se olhando para um nada cheio pensamentos. Não eram as dúvidas que o incomodavam, era aquela certeza obtusa de que nada mais havia. Sua ilusão desfolhava, outonando-se aos poucos. Cada vez mais se entrevia o firme tronco seco de uma cumplicidade que morrera, mas por algum motivo insistia em restar de pé. Ela não era mais tudo que precisava, não queria lhe dar a lua nem qualquer outro pedregulho — era alguém. Subitamente, ele se via coadjuvante num final secreto que as comédias românticas nunca mostram. Deitou-se virado para as costas dela, sem coragem de tocá-la, como se aquele corpo fosse feito de cinzas. Então, aos poucos, enquanto adormecia, a imagem dela lentamente ia se dissolvendo mais uma vez... como estranhamente acontecia todas as noites desde que ela havia ido embora.

sábado, 12 de março de 2011

Leito de Morte

Thomas Hood (1798-1845) [Tradução de Heber Costa]

Vigilamos seu fôlego noite adentro:
Um fôlego débil e meigo
Como a maré da vida num perene
Fluxo-influxo em seu peito.

Nosso falar parecia silêncio
E os gestos, sob forte brida
Por devotarmos quase toda força
A um prolongar de sua vida.

Da própria esperança brotava o medo,
E do medo a esperança ressurgia —
Quando a víamos morrer, dormira;
Quando pensamos dormir, morria.

Chega a opaca e sombria aurora
Com uma frieza matinal que arrepia,
É a hora que suas pálpebras se calam
numa aurora que não essa do nosso dia.


The Death-bed

We watch'd her breathing thro' the night,
Her breathing soft and low,
As in her breast the wave of life
Kept heaving to and fro!

So silently we seemed to speak —
So slowly moved about!
As we had lent her half our powers
To eke her living out!

Our very hopes belied our fears
Our fears our hopes belied —
We thought her dying while she slept,
And sleeping when she died.

For when the morn came dim and sad —
and chill with early showers,
Her quiet eyelids closed — she had
Another dawn than ours!

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Culpa de Sangue

A besta resfolegava, bico entreaberto, tremendo como nunca de terror e êxtase pelo poder de tirar uma vida, pela traição ao divino. A mulher não merecia. Tinha olhos redondos peixados para o lado e um corpo lépido e ágil, típico das presas que precisam fugir de predadores. Não adiantou. Enredada no braço, gazelou-se desesperadamente. Os dedos autômatos rapinamente apertaram sua garganta. Depois de alguns minutos, soltou um piado e lebrinou para o lado, com os olhos rubros. Ainda respirava, contudo. Nessa hora, um gralhado, não sei proveniente de que falcoaria, ecoou mórbido e indiscreto enquanto os lábios se mexiam. Saltou-lhe então uma garra afiada e meteu-a entre as costelas. Sangue avinhado manchou-lhe as patas. Na Grécia, o assassínio deixava uma mácula indelével, macbethiana, signo do perdão inalcansável. O sangue de vítima espalha a morte, mancha a pele. Diz-se que o plasma morto contamina o vivo, e a morte pulsa de dentro para fora, levando à loucura e ao delírio da visão de si num espelho bizarro, deformado pelo tânatos. Abominado dessa culpa de sangue helênica, o assassino se contorcia. Seu recém-funesto prazer rexpulsava, porém, qualquer arrependimento com espasmos de adrenalina. Jogada a um canto, esvaída, a presa por fim expirou. Instintivamente, gritei de horror. A besta virou-se... e era eu.