quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Natal do Urbanismo Bucólico

Parece uma bobagem, alguém já pensou realmente que sacrifício é necessário para coadjuvar num cenário que lhe é completamente estranho? Veja-se, por exemplo, um urbano como eu caindo destoante numa paisagem bucólica. Primeiro, há uma familiar sensação de estranheza. É a mesma que sentimos com conhecidos que nos encontram nos bares e sentam à nossa mesa para uma conversa sem sentido nem razão de eternos minutos. Assim, fiquei recluso algumas horas, lendo, com pensamentos democráticos sobre inúmeras atividades pelas quais poderia optar no mundo tecnológico do DVD e do computador. Antes que percebesse, porém, meu autogoverno sofreu um golpe de estado de um sono tirânico trazido por uma brisa que insistia em invadir as janelas. Acordei-me atordoado com a penumbra do fim de tarde (madrugada?) e decidi enfrentar aquele hostil ambiente natural. “Estive aqui há muito tempo.” Dei uns passados incertos arrodeando da casa tentando acompanhar o arredio pôr-do-sol que já fugia. Galinhas incautas se alimentavam vorazmente na incessante corrida para ver quem chega primeiro à panela. Percebendo a minha inadequação, proativas formigas me enxotaram a ferroadas bruscas nos pés como quem extirpa uma nota dissonante de uma sinfonia. Corri para a varanda e me sentei com um livro — objeto cuja importância as muriçocas parecem desconhecer completamente, já que não tinham interesse em abandonar sequer um saboroso poro da minha pele nem para perscrutar o que diziam as primeiras linhas. Vencido, enclausurei-me novamente. À noite, dei nova chance ao mundo exterior. Sorrisos e palavras leves, embora carregados de sotaques, flutuavam pelo alpendre às vezes atingindo em cheio meu ouvido vago. Eram conversas agradáveis sobre bois e plantas e terras e vaquejadas em relação às quais eu fingia um conhecimento empírico laçando um ou outro termo-chave que galopava pela mesa (por duas ou mais vezes, não sem algum constrangimento, vi escaparem da minha boca um “paluza” seguido de perto por um “alazão”). Consegui simular um interesse sincero em músicas de “Vito & Léo” que me são totalmente desconhecidas e até fiz comentários efusivos sobre sua desenvoltura ao violão e sobre como eles eram menos sertanejos que os tradicionais. Sei que isso tudo é reprovável, mas o que mais pode fazer um sujeito mediocremente urbano se não um complexo jogo para se encaixar na vida simples do campo? Pois é. Na vida, há que se fingir, mas sem perder a postura jamais.


Se você também não sabe o que é “paluza”, clique aqui.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

À Solidão de Minha Amada

Quão difícil é estar sozinho neste mundo. Quão sépias as alegrias que brotam à procura de outras alegrias à sua volta sem um sorriso que as espelhe nem lábio mais trêmulo de cumplicidade. Quão triste é as lágrimas caírem sem que ninguém beije seu salgado beijo de tristeza, molhando ainda mais seu sagrado medo de caírem. E quão triste é ter de conter as lágrimas por falta de um tácito olhar confidente dizendo, por mímicas e cílios, que está ali para todo sempre. Meu amor, quão triste são os presentes que não têm dono, os gatos que miam sem casa, as folhas que caem ainda verdes e jamais tornarão às suas origens. Assim são os solitários, os errantes, os que escolhem para si próprios os acordes de uma vida cantada em vez da coreografia fixa de uma vida mal vivida. Ah, meu amor, mas se nestas palavras, nesses gatos, presentes, folhas e lágrimas reconheceste algum pedaço idêntico a ti, engana-te: jamais estivestes sozinha, apenas estivemos separados pelo relógio atrasado das horas mais propícias.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Conto-de-fadas que Queria Ser Romance

Era uma vez, num reino muito, muito longe, a muitas e muitas palavras de distância, um conto-de-fadas bem pequenino que queria ser romance. Mas não um desses romances que não param em pé na estante. Queria ser um Romance! O pobrezinho não era muito bem pontuado — era até meio feio —, mas vivia suspirando e sonhando, com suas frases curtas sustentadas por suspensórios, em crescer e ficar grande e coeso para contar, não de crianças que se perdiam na floresta, mas de dragões e cavaleiros. “Um dia”, pensava ele com seus travessões, “vou ter mais de trezentas páginas”. Como é do costume dos infantes, de paciência não tinha nem uma vírgula. Decidiu, então, que ia crescer mais rápido. Assim, enquanto as cantigas-de-amigo brincavam de roda, passou dias e dias tomando as providências: tomou muita sopa de letrinhas, brincou de nome-lugar-objeto até enjoar, devorou todos os brotos de fábulas que encontrou pelo caminho — tudo isso para ganhar mais palavras e se tornar um grande e novelesco romance. Mas a Natureza é sábia no seu tempo, e o continho-de-fadas empanturrou-se demais e ficou tonto, meio confuso, e acabou perdendo a coerência. Resultado: na pressa, engoliu tantas palavras aleatórias e formou tantas frases sem sentido que, em vez de romance, terminou obeso e disforme como tese-de-doutorado, coitado!

Moral: Devagar se chega a romance.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A Guerra Nossa de Cada Dia

Hoje, vou escrever sem versos nem estrofes porque estou triste e abatido demais. Vou quebrar meu voto de só escrever algo que tenha algum valor para os outros também. Vou macular este espaço. Aqueles que buscam alguma literatura nestas palavras torpes e prosaicas hão de me perdoar. Pra fazer literatura, tem que se falsear um pouco o sentimento... ser fingidor, como já disseram. Hoje, não agüento fingir. Não agüento mais fugir. Sei que vão debochar de mim porque estou usando uma metáfora de guerra, mas não consigo ver descrição melhor. Deus, até onde vale a pena se esforçar para ser uma boa pessoa? Não sei. O pior, no entanto, é o inferno de não ter opção. Para que não tem talento para a patifaria, não existe a possibilidade de cair na maldade. Simplesmente não existe. Dá-se um jeito, contorna-se o problema, recua-se ante o inimigo. Ser maligno: jamais. Os que nem tentam é que estão certos, pois ser maligno é uma arte. Não é para qualquer idiota. Tentar ser mau sem talento é cair em desgraça. Esses que vocês vêem presos aí na TV são os que não levam jeito ou são burros demais até para serem maus. Os maus mesmo vencem todos os dias, malditos. Dia a dia, acordamo-nos, levantamo-nos e vamos à luta somente para sermos abatidos e cairmos e levantarmos de novo para — quem sabe? — comemorar uma ou duas vitórias a cada 365 dias. Felizes daqueles que acreditam na vitória final, pois, de perder tantas batalhas, fico desconfiado se realmente chegarei ao fim da guerra para descansar à sombra da vitória. O mais difícil é isto: você tem que vencer a guerra, mas não vale matar o inimigo. O que resta? Perdão e paz unilaterais... só você cede. Estou cansado desse perdão e dessa paz humilhante que destroem meu espírito. Mas existe cessar-fogo unilateral? Existe, meus caros. Chama-se rendição.

domingo, 7 de setembro de 2008

Realismo Humano

Às vezes, sinto uma ternura tão grande pelo ser humano que meu peito estremece. Mesmo feio, despido de sua dignidade, ainda inspira uma força tão grande ou uma fraqueza tão profunda que olhar nos seus olhos é como mergulhar pelas janelas adentro na alma de um deus. Em outros momentos, no todo-dia, sinto um desprezo pela sua pequenez megalomaníaca, agindo-se como estrela de seu único céu. Sem dúvida, a maior conquista do homem é conseguir variar entre a extrema mesquinhez e a mais insuspeita nobreza. O que me incomoda, por outro lado, é que não me permitam ter essa opinião dúbia como a própria natureza humana. É estranho como a idéia de amadurecimento esteja associada a um enrijecimento das opiniões, uma cristalização das idéias que tenciona exilar a tensão da dúvida nos tempos de uma adolescência titubeante. A humanidade tem essa mania estranha de ir na contramão das coisas. Afinal, com as frutas, o amadurecimento é diferente: primeiro, enquanto estão crescendo, elas são duras e intragáveis; depois, tornam-se macias e palatáveis. Nos adultos, ser flexível é sinal de falta de firmeza de caráter e, por conseguinte, das decisões. É mesmo muito contraditório: embora seja inegavelmente instável, o ser humano sempre se espelha na certeza das verdades únicas. Curiosamente, não são poucos os que se apregoam “realistas”. Mas o que é ser realista senão afirmar que se acredita que tudo é conforme sua própria realidade individual? Que, verdadeiramente, sabe o homem de outras realidades senão aquilo supõe, induz ou deduz? Diante disso, a recorrente frase “Eu sei”, oferecida como consolo aos que sofrem, resulta nada mais do que um conjunto vazio — uma farsa bem-intencionada que acaba sendo descoberta em flagrante na resposta do olhar de outrem que pergunta: “O que você sabe?”. Sei que nada sei. Isso, sim, eu sei.

Escrito ao som de Je Pense à Toi, de Amadou & Mariam.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Olinda à Noite e a Traição do Mar com Celestina

Dizem que Olinda à noite é a amante despida dos acasos do Mar. No inverno, na menopausa da folia carnavalesca, ela se entrega ao dono das ondas suadas e mornas de trabalharem o calor do dia. O Mar, de maré manhosa, ora agride, ora acaricia o perfil de sua nudez: pedras acintosas na praia desnuda. Mais tarde, depois que Olinda se desmancha pelos seus ardis, o Mar se esgueira e vai embora pra se juntar com Celestina Cintilante, a dona do céu. É que nestes tempos friorentos, os dois se aninham na safadeza: ela joga por cima seu lençol de estrelas cintilosas; ele, seu cobertor de barquinhos feitiçados em luzes pela anuviação. A essa altura, o Horizonte, que já tem o trabalho de separá-los durante o dia, dorme fatigado. Assim, enganam o eterno empecilho de seus amores e ficam ali, debaixo do grande pano furado de luzinhas. Distante, Olinda acorda sozinha e fica só olhando pela janela do céu. Desolada, ela espera de novo a Manhã, que sempre traz de volta o amante infiel. O Mar, com suas carinhondas, todo dia consegue o implausível: que Olinda perdoe a traição e o receba novamente na cama de suas areias ariscas.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Os Homens Vazios, de T. S. Eliot

Uma homenagem ao Dia do Soldado (25 de agosto).

Os Homens Vazios
T. S. Eliot (Tradução: Heber Costa)


I

Somos os homens vazios.
Somos os homens empalhados.
Tombando juntos
com capacetes cheios de palha.
Que desgraça!
Nossas vozes ressecadas,
quando sussurram juntas,
são mansas e incompreensíveis
como o vento na grama seca
ou ratos por sobre os cacos
de nossa adega consumida.

Forma sem formato,
sombra sem cor,
Força paralisada
num gesto sem movimento.

Aqueles que viram com os próprios olhos
o Reino da Morte.
Lembrem-se de nós
— se é que lembrarão —
não como almas perdidas e violentas,
mas como os homens vazios.
Os homens empalhados.

[...]

III

Esta é a terra dos mortos.
Esta é a terra dos cactos.
Aqui os ídolos de pedra são erigidos,
aqui recebem súplicas
da mão de um homem morto
sob os últimos cintilos
de uma estrela que se apaga.

Não é assim que é
no Reino da Morte?
Caminhando na solidão
até a hora em que
trememos de ternura
e os lábios que outrora beijavam
fazem preces às pedras fendidas.

IV

Os olhos não estão aqui.
Não há olhos aqui,
neste vale de estrelas decadentes,
neste vale vazio.
Esta mandíbula fraturada de nossos reinos perdidos.

E, neste último lugar de encontro,
tateamos para junto dos outros
fugindo à fala.
Reunidos às margens de um rio profundo.

Sem a visão, a menos que
os olhos reapareçam
como estrela perene,
rosa multifoliada
do Crepúsculo, o reino da Morte:
a esperança que resta
aos homens vazios.

V

[...]
Entre a idéia
e a realidade,
entre o movimento
e a ação,
recai a Sombra.

Porque Teu é o Reino


Entre a concepção
e a criação,
entre a emoção
e a reação,
recai a Sombra

E a vida é longa demais

Entre o desejo
e o espasmo,
entre a latência
e a existência,
entre a essência
e a descendência,
recai a sombra.

Porque Teu é o Reino


[...]

Porque é assim que o mundo termina
Porque é assim que o mundo termina
Porque é assim que o mundo termina
Não com um estampido,
mas com um lamento.


Leia o poema original.
Ouça o poema original.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Suspiros e outros mistérios que a gente respira

Os ditados são, em geral, uma maneira particularmente repetitiva de explicitar o que o óbvio e o bom senso já dizem com a eloqüência de um tapa na cara. Mas, como de tudo se aproveita e estamos em tempos de reciclagem, é possível achar uma coisa ou outra na “sabedoria popular” que cabe nos ouvidos e com a justeza de uma nova idéia. Tomemos um dito como, por exemplo, “A quem ama o feio, bonito lhe parece” (há versões diferentes, mas a idéia é basicamente essa). É algo de uma verdade cruel. E pior: a recíproca também é verdadeira. Quando se deixa de gostar de alguém, o rosto é o primeiro a sofrer uma mutação concreta. O nariz arrebitado, em vez de elegante, acaba metido e mal-desenhado. A boca carnuda são só lábios grosseiros. Os cabelos desenvoltos são um ninho de cobras acordando com fome. A pele envelhece, surgem marcas e cicatrizes intrusas, que nunca tinham estado lá. O fervor da paixão fenece no tom opaco e inexpressivo dos olhos. Os movimentos coreografados do corpo tornam-se o desinteressante balé da rotina. A beleza afinal, se põe por detrás dos montes do marasmo, levando consigo os últimos raios de uma perfeição exagerada. Até a mais bela das criaturas agoniza em descaso e se esvai na viscosidade do cotidiano. É isto: quando se deixa de gostar, a boniteza empresta a casa à feiúra. Pois é. Ao que parece, quanto mais verdadeiro o amor menos transforma. A pessoa amada de nada disso precisa: ainda que permaneça a mesma, é bela além de suas feições; é solidamente construída de sensações, gestos e palavras. Tudo isso, quando aquecido na memória, torna-se num vapor etéreo que a gente respira fundo a cada instante. É disso, minha gente, que são feitos os suspiros de amor.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Depoimento de um Palhaço

Rostos, caras e faces... dali do picadeiro, essas palavras não encontravam forma em nada: a platéia era um ninho de bocas escancaradas, esperando migalhas da pantomima que eu iria fazer. Fazia quinze anos que eu alimentava aquelas bocas com alegria e me mantinha faminto, esquelético de qualquer forma de afeto. Quase sempre, ficava do lado de fora da grande lona, olhando o céu e procurando piadas entre as estrelas. Por algum motivo, nunca me fizeram rir. Acho que é porque o céu é como um espelho: você acha que ele está lindo, mas é você quem está feliz. Já maquiado, enquanto fumava um cigarro sentado no baú do mágico, eu esperava todos os dias por um milagre ou uma magia que fosse. Ironia das ironias, o circo é o lugar onde a mágica só acontece para quem está do outro lado. Não me levem a mal, eu amo o que faço. Mas, do lado de cá, a arte de subviver de circo já parecia milagrosa demais pra esperar qualquer coisa além disso. Às vezes, pensava se um dia o trapezista ia cometer um deslize e cair em cima de mim, um palhaço espalhafatoso e desengraçado. Isso, sim, ia ser um grand finale de verdade. Um dia, quando entrei no picadeiro, senti que alguma coisa havia mudado. Os holofotes não apontavam para mim, mas para a moça na terceira fila. Os limites de seu corpo eram a fronteira entre a luz que emanava dela, iluminando meu rosto, e a escuridão esfomeada do todo-dia estampada em cada face da arquibancada. Uma esperança raquítica, mas decidida, acendeu-se por dentro da minha fantasia. A boca dela não se escancarava, pedindo; apenas sorria, oferecendo. Soltei uma piada triste, e ela me respondeu com um riso sincero que se perdeu no meio das gargalhadas em redor. Foi assim que as estrelas me ensinaram a sorrir do peito para os lábios. Foi assim que comecei a me fazer rir. Agora jogo malabares somente com as meninas-de-seus-olhos, conto anedotas só para seus ouvidos, equilibro-me apenas em seu corpo. Foi assim que ela se tornou minha única platéia.

Imagem: Antonis Sarantos

sábado, 5 de julho de 2008

En Passant

Alguém já disse que o bom e o ruim da vida é que tudo passa. Poderia ser o subterfúgio perfeito para preencher o cotidiano de um carpe diem cheio hedonismo e consumo desenfreado. Para aqueles que têm um vazio infinito entre as costelas, porém, o dia en passant é só uma sensação angustiante de que está deixando de fazer algo que a vontade imprecisa define como qualquer coisa. A ironia é que, quando livres das obrigações, fazer nada parece sempre a opção que restou e é servida junto com pensamentos do que falta fazer. É questão de debulhar logo as horas pra chegar no próximo compromisso e depois dizer que está muito ocupado catando-as pelo chão. Pra quê, afinal?

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Vida de um Funcionário da Ferrovia Alto Alegre–Conjunto Esperança


Minha vida

não tem ritmo de soneto

nem sabor de caramelo.

Não é uma volúpia insensata

por momentos de alegria

nem uma busca desesperada

por turbulências pacíficas.

Não tem aventuras adrenalínicas

nem acontecimentos cardiopáticos.

Minha vida

é um homem cercado

por um mar de cotidiano

por todos os lados

... e muita redundância.


Imagem: Bowler, de George Pratt.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Mosaico

Pensando com passos divagares, caminho pelas ruas de uma Casa Amarela luxuriante. De tipos em tipos, afigura-se um mosaico primitivo das gentes. Nas descalçadas pedregosas, recostados às muradas, mendigos bem-humorados dedicam-se à tarefa interminável de separar o imprestável do que não serve para nada, dançando involuntariamente ao som da cúmbia que pigmenta os ares do início da noite. Mulheres rechonchudas resfolegam um cheiro gordo de pastel cumprimentando o céu com seus sorrisos de oito escalas, em acordes sonolentos de volúpia. As ancas disformes forçam espaço por entre roupas minúsculas buscando um toque da mão faceira do acaso. Taxistas parados, inseparáveis de seus veículos, nos quais por vezes encaixam-se, qual peça-motor, com gestos robóticos, observam mecanicamente os transeuntes e — por ironia — o trânsito. No inferninho, começa discretamente a entrada no caminho libertino das maravilhas da escravidão aos prazeres exuberantes e tristonhos. Carregadores de compras, olhansiosos, miram a porta dos sebosos mercadinhos, tocaiando felinamente consumidores pacatos e bovinos. A recém-noturna alegria casamarelense choraminga alto, esticando com avidez os braços para quem quer que passe. Frutas infelizes jazem mortificadas nos carrinhos-de-mão, conhecendo seu destino de não terminar o dia, pois as frutas e as feiras, como as flores presenteadas, são entidades diurnas, que se apodrecem com o pôr-do-sol. As flores, aliás, resistindo ao solo infértil da grosseria que grassa nas ruas do bairro, comparecem à sua venda todos os dias, esperando transformarem-se em gentileza para cumprirem sua razão de ser. Vendedores de sapato vestidos de um rigor engravatado aglomeram-se nas portas de suas lojas aguardando diariamente, mais do que clientes, a vertigem de um daqueles dias lucrativos sem muito significado real: um dia de namorados, de mãe, de pai e, sobretudo, um Natal após o outro. Dezenas de cachorrinhos idênticos — de pelagem parda, focinho escuro e olhos amigos — mendigam à toa com os maltrapilhos mandingueiros, implorando silenciosamente migalhas de afeto e gestos que saciem sua fome. No canto inferior direito, eu, com um constrangido Guimarães Rosa, ando fantasmagórico e lentamente sorrio para dentro pensando o quanto gosto e detesto esse mosaico infame, mas, decididamente, alegre.

sábado, 24 de maio de 2008

Nota Policial

Regina Maria da Silva, dona de casa, 36, saiu de casa às sete, oprimida, cheia de nós e amarras nos cabelos e na alma desalinhados, a caminho da residência da mãe. Um elemento que atende pela alcunha de Gilson, 41, amancebado com a vítima desde 1998, evadiu-se às mesmas sete horas de um bar nas vizinhanças, trope-tropeçando em suas próprias pernas, penas e pesares. Regina Maria chorava a definitiva gota d’água daquela relação seca pela rua deserta em direção ao ponto de ônibus. Gilson sorvia a definitiva gota d’aguardente daquele copo que era prisma e metáfora da ótica deturpada com que via a vida. Ela tinha nas mãos os dois reais e quinze centavos insuficientes para volta e subiu no ônibus assim mesmo, como adivinhando que era uma passagem só de ida desta vida. Gilson pegou a bicicleta Caloi, barra circular, aro 26, e seguiu dando voltas pela rua intentando, a cada círculo incompleto, a direção da casa da sogra. Regina Maria desceu às sete e trinta e três em frente à Padaria Pão de Mel, na esquina da Rua Porto Alegre com a Av. Fernando Feliz, amargurada pelo amor azedo e espinhoso que nela não morria e insistia em circular pelas veias espetando o coração a cada volta completa. Gilson desceu pela Av. Fernando Feliz às sete e trinta e quatro carregando — segundo testemunhas não-oculares — um pacote suspeito cheio pensamentos tortuosos. Após esperar na calçada um hesitante minuto de sessenta e dois segundos, Regina Maria deixou cair um pedaço de memória que a fazia esquecer de Gilson e dirigiu-se à esquina. Nesse exato instante, Gilson chegava ao cruzamento com a Rua Porto Alegre. Ao ver Regina Maria, o indivíduo largou a ébria bicicleta na calçada e dirigiu-se abruptamente na direção da vítima. Sacou o pacote dos quartos, desembrulhou-o e disparou: “Perdoa, meu amor”, segurando uma cocada sofrida na mão. Gilson ajoelhou-se mais uma vez como fizera no dia em que nunca se casaram. O pedido atingiu Regina Maria entre os pulmões, causando-lhe uma súbita falta de ar e um grito mudo na boca do estômago. Vitimada por uma onda de amor fulminante, ela caiu em seus braços arrependidos. O caso flagrante foi registrado na 16ª DP, e os acusados de “formação de casal feliz” foram liberados para responder em liberdade.

domingo, 11 de maio de 2008

A Chegada

Anos depois, angustiava o som inconfundível do destravar da porta. Inconfundível porque humanos, ao contrário dos gatos, não distinguem bem sons com o ouvido: ouvem todos iguais, mas sentem diferentes. Pois era justo aquele estalo que despertava da sonambulância enferma pelo mundo. Um mundo inteiro girava oposto àquela maçaneta da casa onde tudo fazia sentido. Partira sem olhar sua mãe no rosto, com desprezo e um pouco de irritação. Não entendia como alguém que passou tanto tempo viva poderia ser tão ingênua, carinhosa e tão alheia ao mundo. Valente, em vez da mãe, abraçou o mundo. Sua valentia, com o tempo, vestiu-se de vergonha. Imaginava sua mãe velha agora. Uma avó velha, varrendo, varrendo poeiras inexistentes, farelos de memórias vagas, na verdade. Partira sem dar esperança nem abraço. Ela aceitaria agora aquele abraço tão velhinho? Não dar um abraço devido é um tipo de apropriação indébita: quando ele vem para nós, já não é nosso, é para ser dado. Pensando nisso, entrou sorrateiro como uma surpresa. Sentiu uma neblina translúcida e estática suspensa no ar. Eram memórias que ainda não tinham se esfarelado e volitavam vivas pela sala, formando uma nuvem densa, mas transparente, que os parcos raios de sol da tardinha nublada e chorosa umedeciam com um brilho frio. Aspirando fundo essas lembranças, procurou esperançoso pela casa. Mesa arrumada para dois. Esperava-o? Na cozinha, finalmente distinguiu um vulto curvado, voltado ao trabalho vão da vida. Sentiu ímpeto de chamar por ela. Sua mãe, mamãe. Quantas vontades de voltar não engoliu a goles de orgulho para não ver a sentença de perdão perpétuo no rosto dela? Aproximou-se e tocou seu ombro, já antecipando um sorriso incontido no rosto. A velha largou as vagens e virou-se. Tia. Tia? Não, não, letras erradas. Mãe, não. Morta. Estava morta. Morrera lentamente, num caso único de compaixão da Morte, que — em troca de sofrimento — deu-lhe mais anos de esperança pelo retorno dele. Nunca lhe ocorreu, nunca. Tinha uma crença sólida e infundada de que o mundo fazia sentido. Não faz. Vagando para a saída, sentia ânsias de vomitar o vazio de revirava em suas vísceras. Procurava uma explicação, mas só achou um vácuo que sussurrou: depois que se parte, chegar em casa não é mais volta.

Baseado no conto A Partida, de Osman Lins.
Escrito ao som de In Every Dream Home a Heartache, de Jane Birkin e Brian Ferry.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Na Casa do Sol

Quando era pequeno, fiz uma viagem pra casa do Sol. Pra mim, era uma estrada de sonhos flutuando em dentes-de-leão que se desprendiam de suas hastes banguelas, felinos, soprando suavemente pelo mundo. Estrada longa, longa, longa demais, que até perguntação de menino cansa. Viagem de girassóis e gerânios(!) e gerúndios de um sol se pondo num prá-sempre laranja. Estrada de flores de mandacaru indo ao largo do desconhecido, moldurando uma imaginação criança que cheirava o vidro do carro achando bom aquela flor-branca-sem-nome. Era cidade e asfalto e cidade e asfalto. Tantos sãos e santos haviam no nome daquelas vilas com carteirinha de cidade. Cumprimentei todos eles com meninice de calças curtas (querendo só parar para um picolé, na verdade). Quando cheguei, conheci a casa do Sol: era Piauí, era Maranhão. Nem precisava de água pra ser bonita. Seca, bela... é só questão de molhar as consoantes. É uma terra que vive só de sol... sozinha. Era casa de meus tios, todos meu pai. Meu pai que ficou na roça, meu pai que criava bois. Homens lavrados pela vida. Tinha jumento, que ia e vinha carregado de arroz, daqueles que conversam com o vaqueiro por ia! e eia!, arfando com as narinas crescidas feito os tremas sua eloqüência eqüina. Mas tristonhos. Burrinho desinteressado de vida, sem orelha em pé. A gente ia lá dentro do mato pegar saca de arroz com o bichinho conformista, arrazoado. Com medo de cumadre-frozinha e saci, mas com cipó em riste, se fazendo Dom Quixote mesmo montado em burrico de Sancho. Vem, menino, tem aventura para o almoço! Depois, feijão com nata e arroz branco de sobremesa. Jantar era diferente: feijão com nata e arroz branco requentado em noitinha morna. Aí o Sol cansado ia dormir. E a gente menino soliloquiava com as estrelas (que, como todo mundo sabe, são apenas sóis-crianças), perguntando como tava lá em casa, se o gatos tavam bem. Um dia, quando o dono da casa começava seu trabalho solar, fomos embora. E ele ficou pra trás. Somente. Soprando por cima do ombro uns convites luzidios de voltar que eu guardei no fundo da gaveta, sem saber que se apagavam quando a gente fica adulto e vê estrada feito estrada mesmo. E vê flor só feito flor mesmo.

sábado, 12 de abril de 2008

Dor-de-cotovelo

Ela estava linda. Olhei-a pela última vez, fingindo certo desprendimento, e me subiu pela garganta, com uma certeza absoluta, um “a gente se vê” pouquíssimo convincente. Quando engoli seco, desceu foi um vazio com gosto de água barrenta. Deu um abraço e, como de costume, foi-se e não virou as costas. Quando a gente se despede e não vira as costas, só pode significar duas coisas: ou se tem uma certeza implícita de que se verá a pessoa amanhã (a despeito das estatísticas da violência) ou isso simplesmente não faz diferença. E, como se sabe, quando a gente ama, esperar até o dia seguinte é muito tempo. Um aperto acerta o peito à medida que o olho perde de vista aquele “tu” dos poemas de amor que nunca escreveremos — ou que, escritos, serão só palavras que nunca virarão amor materializado, pois papel não agüenta amor de verdade: o poema é o amor maquiado e posto na vitrine. Agora, porém, tudo o que eu sentia era uma melancolia suave e irritante, incapaz até de me impulsionar a uma noite de bebedeira regada a lágrimas de fim de noite. Enquanto a observava descer a rua, pensava como é ingrato já ser passado. Seus olhos já não me viam: estavam brilhantemente vidrados no futuro, à frente. É uma sensação de ter ficado, de ter passado, de parado. Mas, convenhamos, conformismo é preciso. Então, vamos aos clichés: o amor é assim mesmo. Quando passa, é vazio, tristonho e elegante como um solo de trompete num jazz de Madeleine Peyroux. Quando está, é cheio, esfuziante e despojado como a sanfona de Dominguinhos. Secretamente, desejei-lhe o melhor e, mesmo sem vontade, fiquei com o pior para mim. Esse meu amor, no entanto, já não dói: alugou um quartinho no meu Bairro dos Amores e estará lá, quieto, para sempre. Só então senti uma dorzinha chata entre o pulso e o ombro. Era a tendinite.

Imagem: Zhong Biao

sábado, 29 de março de 2008

Crônica de uma Quinta-feira em Casa Amarela

Era Casa Amarela à noite, nas redondezas de uma quinta-feira. Estávamos, o Mago e eu, sedentos e cansados atrás de um refrigério para o corpo. Encontramos abrigo nas barbas do Morro da Conceição, num ambiente estritamente familiar. Pedimos uma impensada cerveja como autômatos e começamos a discutir com a seriedade e a dedicação costumeiras os rumos profissionais e pessoais da vida alheia. A noite já ia perdendo o ritmo e se espreguiçando rumo a uma sexta-feira de batente. Escutávamos num protesto silencioso uma desafinada que havia dado um golpe de estado no cara do banquinho-e-violão — aproveitando-se da intimidade unilateral forçada que surge da relação entre os bêbados assíduos e os garçons e cantores de bar — quando uma cena me chamou a atenção. Um sujeito, sacrilegamente, esvaziava os últimos cinco dedos de uma garrafa de Johnny Walker Black Label diretamente no chão do bar com uma atitude serena como a dos que fazem justiça e dormem bem à noite. O garçom noviço, em pé junto à mesa, olhava perplexo ora para o homem, ora para o chão, ora para todos nós (os sete gatos-pingados presentes) — que, obviamente, olhávamos para o whisky. Enquanto o leitoso Johnny chorava, derramado, percebi que a garrafa levava uma etiqueta daquelas com o nome de um dono bem-sucedido. Nos primeiros segundos, pensei que o coroa dedicava respeitosamente um gole “para o santo” e que santo de rico passa bem demais. Trinta segundos depois, comecei a desconfiar que não havia santo assim, tão cachaceiro, e passei a amaldiçoar a pachorra dos ricos em esbanjar sua abastança acendendo cigarros com dólares e lavando chão de bares de Yellow House com Black Label (que, agora, no piso, era só uísque). Nesse ínterim, o indivíduo — faltando um dedo para terminar a garrafa — parou de derramar o precioso malte e tranquilamente recolocou o vasilhame numa prateleira acima, encabeçada pelos dizeres Reservado para os Fundadores. Tive um ímpeto de gritar: “Ficou um restinho!”, pois detesto serviço malfeito, mas me contive. O derramante virou-se então para o empalidecido garçom (que estava ainda on the rocks) e, semi-levantado e dedando o ar com o dedo-dosador da mão direita, disparou: “E se ele vier dizer qualquer coisa, diga àquele filho-da-puta que foi João do Barro quem derramou o uísque dele”. Em seguida, prosseguiu, matemático: “E que, se estiver achando ruim, ele venha aqui, que eu dou seis... não, não... dou doze tiros nele aqui dentro... não, aqui dentro, não. Ali na calçada, eu dou doze tiros nele!”. Refleti que o homem devia ser comerciante, desses que gostam dos números redondinhos e contam tudo de meia dúzia em meia dúzia. Ainda sim, admirei sua consideração para com aquele distinto bar de tijolo aparente, num bem localizado subúrbio pied-de-morro do Recife. O garçonzinho, embriagado de perplexidade, deu meia volta e sumiu. O velho sentou-se, esvaziado. A música tornou a fluir, timidamente. O Mago e eu entreolhamos, levantamos nossos copos cheios e bebemos... saudando tacitamente mais uma noite em Casa Amarela.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Desarmado (ou Bobagens de Quando a Gente Gosta)

A construção de um adulto é uma mutilação. Ganha-se muitas obrigações, perde-se vários direitos. Perde-se o direito de ter dúvidas, de ser bobo, de falar sacanagem, de ficar bêbado, de pegar um ônibus desconhecido, de estar nu em casa, de andar sem destino, de estar desarmado. Mas quando se gosta de alguém, recupera-se o direito (e permissão) de novamente não ser crescido. Por isso, estar apaixonado é algo infantil (no melhor sentido). Anda-se a esmo por causa de qualquer jasmim mais cheiroso. Qualquer riso amarelo é de uma ternura radiante. Fica-se completamente desnudo de certezas (ou vestido nalguns trapos de seriedade mal tecida) e completamente bobo quando de um olhar encontrado com a pessoa gostada. A bobagem vira tratado filosófico; a sacanagem, singeleza. Conversa-se água, chovendo palavras no molhado, mas de boca seca de tanto estar de coração na boca. Na verdade, palavras secas de si, só para manter o fluxo do único fluido agora indispensável: mais um pouquinho do outro. Nada como a espera desesperada de cada palavrinha vazia de razão e cheia de doçura. Quando a gente gosta, fica desalmado. Isso mesmo: sem alma. Só uma carne-viva esperando um movimento elétrico do outro, que machuca e extasia num só tempo. Quando a gente gosta, fica descarado. Faz uma cara fechada de tempo nublado que um sorriso abre sem chave nem chuva. Quando a gente gosta, fica desarmado.

... bom demais gostar, ruim é ficar desamado.

domingo, 9 de março de 2008

Domingo (Parte II)

Domingo é um dia sem poesia. Passa-se o domingo a toque de controle remoto. Esse dia de descanso é o mais cansativo. Cansado, sozinho. O olhar encurralado nos cantos da sala procurando displicentemente uma saída. Mas, do domingo, não há saída. A única porta que existe se abre de meia-noite, mas ela dá direto na segunda-feira. Coloco um CD e ouço os rangidos do chão de taco enquanto ele toca e eu rodo pela sala. Jantar (sorvete) sozinho. TV. TV. TV. Não tem poesia. Uma pia de cozinha no domingo à noite definitivamente não é poesia. É raro um dia autenticamente feliz. Um domingo, então, nem se fala. Um dia feliz é como um poema no meio de uma página de jornal. Bastavam dois versos de Pessoa entre a (milésima) notinha sobre a violência no Recife e a resenha de Ypiranga um, Sport, zero. É bom assim: uma felicidade numa forma que a gente nunca espera. Não sei o que fazer da vida. Pai acha uma coisa; e mamãe — que Deus a tenha — achava nada. E ela estava certa: no fim das contas, é melhor não fazer nada até a hora chegar. É como conversar, como dançar. Um instante que é simplesmente melhor que o outro, e ninguém se sabe por quê. O problema é que a espera é cansativa demais. Essa vida é de espera. Essa vida com programas de índios xingu e calouros-mirins. Essa vida de domingo, de dormindo. Domingo é assim: no fim do dia, tudo que resta é uma sensação de que ele se foi levando alguma coisa muito preciosa e deixando um vazio que ocupa, na exata medida, o peito. Tô pensando demais. Melhor mudar pro Faustão.

domingo, 2 de março de 2008

Domingo (Parte I)

Já se disse que a gente morre um pouquinho a cada minuto. Pois bem, podem contabilizar que no domingo se morre dois pouquinhos (seja lá quanto isso for) a cada minuto. É triste. “A vida é assim. Mas há que se trabalhar pra viver.” Na verdade, não existe muita opção na vida. Aliás, só há uma: viver. A diferença é quanto tempo se demora pra descobrir isso e “escolher” essa “opção”. Há que se viver. Tem de se viver. Afinal, quanta desgraça é necessária pra que alguém consiga permissão pra ficar triste num canto por um tempinho sem ter que ir lavar os pratos? Pra que deixem descansar da vida por segundos (vale lembrar que dias são apenas uma multidão de segundos...). É uma inundação de tanta coisa da vida. Por isso, existem(?) os suicidas. Suicida é uma pessoa que morreu asfixiada de tanta vida. Não conseguiu tomar um fôlego. A vida, como as outras substâncias aquosas e mutáveis, afoga as pessoas quando engolfa. É quase uma morte acidental.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Gentes Brutas (ou A Propósito do Charme)

O bicho-gente parece ter sido feito pra ser algum tipo de estranho de cristal, cujas moléculas deveriam ser perfeitamente organizadas, mas a convalescença da vida, com suas tantas variantes, sempre deixa alguma coisa fora do lugar. Assim, nesse puxa-daqui-puxa-de-lá, ficamos eternamente desfocados. Sob a luz, revelam-se gentes brutas, não lapidadas, de um brilho difuso e duvidoso, tentando se estruturar e transparecer toda a perfeição inexistente. Falando nisso, vale dizer uma ou duas coisas sobre o charme. Esse fator muitas vezes substimado é algo que se revela bem mais complexo, como quase tudo que é mais sentido do que visto. Charme (do latim, carmen, "feitiço, fórmula de encantamento") é uma questão de confiança, muito mais do que de beleza. A segurança (na acepção de confiança) — na minha opinião, um dos vértices do nosso ser poliedral — é uma das coisas mais atraentes que existem. Não devo retornar às geladeiras (vide post mais abaixo), mas pode-se comentar en passant que a questão recai novamente sobre garantias. Por que a independência, a segurança e a confiança (elementos-chave do charme) são tão cativantes? Queremos outros independentes, que não se ancorem em nós? Queremos nos ancorar nesses outros? Mais do que perguntas, são fatos. Sinto falta disso. Há dias em que refrato difusamente a luz que chega a mim; sem a transparência da segurança, como se conspurcasse a luz ao tocá-la, sem charme algum. A magnitude do charme está na sua perenidade; ou seja, ao contrário da beleza, que é efêmera e limitada, o charme ultrapassa as barreiras de idade, simetria e sexo. No fim da vida, mesmo os idosos mais belos carregam apenas uma caricatura da beleza que existia antes, uma arquelogia dela, que na verdade, fica no fundo dos olhos, e não mais espalhada pelo corpo. O charme é belo em essência porque está relacionado a — com o perdão do inevitável cliché — amar vida (lato sensu, e não apenas a própria vida), com tudo que ela tem, lembrando Vinicius de Moraes, de choro, beleza, violência, alegria, traição e... amor. O charme tem cheiro, cor, carga elétrica e é percebido simultaneamente por todos os nossos sentidos. É a refração perfeita da luz, é um paradoxo refração–reflexo. É aparência da estruturação perfeita de um ser.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Balada de Um Amor Desconhecido

Desde que te desconheci,
Vasculho as palavras por teu nome
Ou um adjetivo que te descreva
Nos meus versos e vícios vazios

Desde que te desconheci,
Tenho andado feliz e cantante
Nas canções que teu corpo etéreo
Cantarola sutilmente para mim

Desde que te desconheci,
Espelho tua face em cada rosto
E te reconheço, desconhecida,
Nas ondas de olhos marejados

Desde que te desconheci,
tenho muita pena dos solitários,
Que invejam minha solidão perfeita:
A ternura de teu amor desconhecido

[Ilustração: Thahy - http://thahy.stripgenerator.com/]

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Fogo

Depois de estar vivo por quase dois dias, abandonou-se a uma liberdade precária: comia o que lhe dessem e andava por caminho que se lhe oferecesse, como se caminho fosse coisa que se cria em vez de existir antes. Não importava muito. Nada importava nada, quanto mais muito. Tinha fome de um sorriso amigo, mas só encontrava a miséria nos rostos alheios (talvez mais famintos que ele próprio). Foi quando decidiu beber. O ardor quente e seco do gim lhe inundava o espírito, por segundos, de paixão e de um sabor ligeiramente azedo — que era o mais próximo do que ele conhecia por felicidade. Mas era só um triste engano. Era a negra boca da solidão que o carcomia, consumindo lentamente sua forma e força. Seu corpo queimava por dentro nas faíscas oriundas do atrito entre suas últimas esperanças e a aspereza do que via em derredor. Daí confundir a angústia de combustão lenta que sentia com a secura fervilhante do álcool e a acidez de sua gastrite. Ainda assim, era esse o combustível que o movia. Apenas ia, desafiando a transitividade do próprio verbo. Ia. Sentia que se parasse, seria tolhido por uma força muito maior que ele, vinda de si próprio e dirigida contra ele mesmo: implodindo. Não era um vazio que sentia. Era vácuo. Algo que ameaçava (na sua força gravitacional de grandeza astronômica) encerrá-lo dentro de si próprio e comprimi-lo a um espaço menor do que um coração. Fosse o que fosse, sabia que era o fim. Consumiu-se no último cigarro enquanto a calçada estreita dançava à sua frente ao ritmo das treze doses de gim e tônica que tomara. Subitamente, a calçada escureceu e alargou. Pode ver uma luz doce e convidativa que se aproximava, enchendo seu peito de alívio. Não importava o que era (como disse, nada importava). Importava apenas o que debelasse aquele fogo-fátuo de ansiedade e memória em sua alma. Sentiu a brasa da bituca queimar seu lábio. Deixou. Esperou. Enchendo-se pela última vez de luz, mantendo os olhos abertos até o fim.

Ninguém entendeu o que fazia aquele sujeito no meio da rua quando foi atingido, mas quem assistiu à cena garantiu ao menos uma coisa: ele sorria como se nunca tivesse sorrido.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Shadowboxing

No boxe, um dos primeiros treinos é o shadowboxing, ou simplesmente sombra, que é basicamente lutar com a sua própria sombra. Acho pretensão e até desrespeito filosofar do boxe uma metáfora da vida, mas esse é (física e metaforicamente) um grande teste: enfrentar um adversário tão (pouco) ágil e tão (pouco) astuto quanto você. Acima de tudo — vez que o boxe consiste em enganar o adversário, isto é, fazê-lo pensar errado e atingi-lo com um golpe imprevisível para ele —, enfrentar a sombra é algo infinito, pois é um rival ciente de todos os seus pensamentos, a quem, portanto, você jamais poderá enganar. Às vezes, fico com a sensação de que estou fazendo isso o tempo todo: reagindo a cada pensamento e sentimento meu, numa sincronicidade eterna e vazia de propósito. No fundo, talvez o objetivo seja estar preparado enfrentar os outros (o que é ridículo por si só). Isso me faz pensar que a única forma de atingir minha sombra é acreditar de forma tão convincente em alguma coisa que eu mesmo não saberia dizer se é verdade ou não depois de dois ou três copos de vinho — que é um lugar fronteiriço entre os reinos de Tenho Certeza e Já Não Posso Julgar; um lugar quando a verdade começa a se diluir em relatividade, deixando um gosto esquisito na boca.

No entanto, a despeito de qualquer treino, no shadowboxing não há como sair ileso: a única forma de acertar um golpe é expondo uma fraqueza.

[Foto: http://www.pbase.com/arn/snickers]

You made me a shadowboxer, baby
I want to be ready for what you do
I've been swinging around me
'Cause I don't know when you're gonna make your move

[Shadowboxer, do disco Tidal (1996), de Fiona Apple]

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Geladeiras...

Semana passada, ouvi uma frase e viajei nela: o mal maior do ser humano é o desamparo. Faz sentido. Não há garantias. Às vezes, no desespero de garantir, entram coisas na pessoa e ocupam lugares que só ela deveria ocupar. Carreira, conhecimento, carro. É um jogo estranho de se esvaziar e se encher em que os círculos encaixam nos triângulos (como naqueles joguinhos de bebê). Quando vazio, a gente quer preencher com o que estiver à mão. Vai ver que é por isso que a gente abre a geladeira dez vezes e não pega nada, como se estivesse procurando um pedaço que está faltando (a geladeira deve ter algum poder místico de atração para quem não sabe para onde ir). Não sei. Mas os melhores dias realmente são aqueles em que você não tem nem chão e isso absolutamente não incomoda: anda por cima de uma música que só está na sua cabeça, e o mundo ao redor, mesmo assim, dança.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Rotina

e ia dormir. Logo começava o mesmo dia novamente. As mesmas roupas, vazias de Estevão, entravam nos mesmos sapatos velhos. Sua camiseta branca suja e esgarçada nem na palavra lembrava as alvas garças do porto onde carregava, todos os dias, seu quinhão da vida. Pegava o ônibus cheio e segurava firme na barra de ferro e agüentava os sacolejos até a última parada da rua dezessete de novembro e suportava os olhares e descia sem tomar um gole de fôlego. Uma vez no porto, desligava. Arrastava-se no curto espaço de 15 metros entre o monte de sacos e o mesmo caminhão vermelho (eram todos iguais) centenas de vezes durante o dia naquele indo-voltando automático. Eram mesmos metros que, irônica e diariamente, viravam quilômetros. Curvado, saca nos ombros, olhos no chão, conhecia cada palmo daquele caminhozinho de terra infinito. Às vezes, olhava de lado, invejando aquele mar hostil e a imunda beira do cais e sentia uma tristeza. Era a vida que passava por ele, faceira e debochada, no rosto dos namorados do cais e dos velhos que entupiam os pombos com as sobras dos sacos de cereais. À tardinha, com o pôr-do-sol sobre as costas, voltava. Se ainda houvesse alguém a lhe esperar, um beijo para molhar seu cansaço, carregaria alqueires de sonhos e sacas de lembranças, todos os dias, com um sorriso descabido dentro do peito. Mas não havia. À noite, então, um cigarro de palha pensativo, um gole de cachaça sem vida e ia dormir.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O Espelho

Olhava-se pela terceira vez no espelho, espantada. Sua pele parecia opaca, e os poros abertos. Cansava-se daquela verdade cruel do espelho. Todo sorriso era um arco de cera que só esticava uma tristeza fina de canto a canto da boca. O resto do corpo, não tinha coragem de olhar. Já sabia que veria aquelas escamas flácidas. Não era de admirar: estava no auge dos seus 22 anos. Já era uma anciã da adolescência, prestes a falecer para a idade adulta. Não sabia quando nem como nem onde envelhecera tanto. Sabia. Foi em Ricardo. Foi sem Ricardo. Ali, sim, estava viva, jovem. Sem as mãos dele, seus seios pareciam murchos, pequenos. Sua cintura, reta. Nenhuma curva se apresentava ao seu próprio toque, e o espelho — absolutamente simétrico, não há dúvida — não desenhava sequer uma vírgula que pontuasse aqueles quadris desinteressantes. Sem aquele amor, era um ser disforme; como se o amor não estivesse por dentro, mas envolvendo-a, modelando-a. Em algum momento, não sabe como — talvez enquanto rodopiava e rodopiava despreocupadamente naquelas mãos que lhe davam forma —, o oleiro desviou os olhos de si, descuidando dela por um ou outro motivo insípido, fazendo-a perder o ritmo e se perder, deformada e encolhida, numa bolota de abandono. O que não daria para fechar os olhos, esquecer sua imagem na sinceridade nua do espelho, sentir aqueles braços em seu redor, por trás, pelos lados de sua cintura, dando-lhe corpo. Mas, agora, tudo que tinha diante de si era ela mesma e, claramente, não se bastava. Buscando na sua figura qualquer semelhança de como era enquanto amor. Não encontrava... Mas... e se o espelho, na sua perfeita mentira, a enganara? Esperança. E se dançasse novamente? Talvez, num súbito demi-detourné, tomasse forma novamente o seu balé, e seu corpo se firmasse, sem que força alguma lhe fosse modelo, senão seu próprio rodopio. Não precisava de espelho algum para lhe dizer que forma tinha. Não tinha forma alguma... e não precisava ter. Tinha a sempre mutável forma da beleza. Mudava sua forma a cada instante com as curvas que fazia com seus braços enquanto, de olhos fechados, se esticava apenas com a ponta dos pés no chão do banheiro. E nada — nenhuma mão, nenhum braço — limitava a leveza de sua figura.

Imagem: North Star (1902), de Alphonse Mucha (1860–1939).