domingo, 11 de maio de 2008

A Chegada

Anos depois, angustiava o som inconfundível do destravar da porta. Inconfundível porque humanos, ao contrário dos gatos, não distinguem bem sons com o ouvido: ouvem todos iguais, mas sentem diferentes. Pois era justo aquele estalo que despertava da sonambulância enferma pelo mundo. Um mundo inteiro girava oposto àquela maçaneta da casa onde tudo fazia sentido. Partira sem olhar sua mãe no rosto, com desprezo e um pouco de irritação. Não entendia como alguém que passou tanto tempo viva poderia ser tão ingênua, carinhosa e tão alheia ao mundo. Valente, em vez da mãe, abraçou o mundo. Sua valentia, com o tempo, vestiu-se de vergonha. Imaginava sua mãe velha agora. Uma avó velha, varrendo, varrendo poeiras inexistentes, farelos de memórias vagas, na verdade. Partira sem dar esperança nem abraço. Ela aceitaria agora aquele abraço tão velhinho? Não dar um abraço devido é um tipo de apropriação indébita: quando ele vem para nós, já não é nosso, é para ser dado. Pensando nisso, entrou sorrateiro como uma surpresa. Sentiu uma neblina translúcida e estática suspensa no ar. Eram memórias que ainda não tinham se esfarelado e volitavam vivas pela sala, formando uma nuvem densa, mas transparente, que os parcos raios de sol da tardinha nublada e chorosa umedeciam com um brilho frio. Aspirando fundo essas lembranças, procurou esperançoso pela casa. Mesa arrumada para dois. Esperava-o? Na cozinha, finalmente distinguiu um vulto curvado, voltado ao trabalho vão da vida. Sentiu ímpeto de chamar por ela. Sua mãe, mamãe. Quantas vontades de voltar não engoliu a goles de orgulho para não ver a sentença de perdão perpétuo no rosto dela? Aproximou-se e tocou seu ombro, já antecipando um sorriso incontido no rosto. A velha largou as vagens e virou-se. Tia. Tia? Não, não, letras erradas. Mãe, não. Morta. Estava morta. Morrera lentamente, num caso único de compaixão da Morte, que — em troca de sofrimento — deu-lhe mais anos de esperança pelo retorno dele. Nunca lhe ocorreu, nunca. Tinha uma crença sólida e infundada de que o mundo fazia sentido. Não faz. Vagando para a saída, sentia ânsias de vomitar o vazio de revirava em suas vísceras. Procurava uma explicação, mas só achou um vácuo que sussurrou: depois que se parte, chegar em casa não é mais volta.

Baseado no conto A Partida, de Osman Lins.
Escrito ao som de In Every Dream Home a Heartache, de Jane Birkin e Brian Ferry.

3 comentários:

Unknown disse...

Só digo uma coisa: Meu Orgulho!

Anônimo disse...

Massa, velho! Esse conto tá padrão demais (gíria de fera ducarái! hehehe). Muito bom, cara.

Unknown disse...

que texto lindo, amigo. parabéns. tá sensacional.