sábado, 24 de maio de 2008

Nota Policial

Regina Maria da Silva, dona de casa, 36, saiu de casa às sete, oprimida, cheia de nós e amarras nos cabelos e na alma desalinhados, a caminho da residência da mãe. Um elemento que atende pela alcunha de Gilson, 41, amancebado com a vítima desde 1998, evadiu-se às mesmas sete horas de um bar nas vizinhanças, trope-tropeçando em suas próprias pernas, penas e pesares. Regina Maria chorava a definitiva gota d’água daquela relação seca pela rua deserta em direção ao ponto de ônibus. Gilson sorvia a definitiva gota d’aguardente daquele copo que era prisma e metáfora da ótica deturpada com que via a vida. Ela tinha nas mãos os dois reais e quinze centavos insuficientes para volta e subiu no ônibus assim mesmo, como adivinhando que era uma passagem só de ida desta vida. Gilson pegou a bicicleta Caloi, barra circular, aro 26, e seguiu dando voltas pela rua intentando, a cada círculo incompleto, a direção da casa da sogra. Regina Maria desceu às sete e trinta e três em frente à Padaria Pão de Mel, na esquina da Rua Porto Alegre com a Av. Fernando Feliz, amargurada pelo amor azedo e espinhoso que nela não morria e insistia em circular pelas veias espetando o coração a cada volta completa. Gilson desceu pela Av. Fernando Feliz às sete e trinta e quatro carregando — segundo testemunhas não-oculares — um pacote suspeito cheio pensamentos tortuosos. Após esperar na calçada um hesitante minuto de sessenta e dois segundos, Regina Maria deixou cair um pedaço de memória que a fazia esquecer de Gilson e dirigiu-se à esquina. Nesse exato instante, Gilson chegava ao cruzamento com a Rua Porto Alegre. Ao ver Regina Maria, o indivíduo largou a ébria bicicleta na calçada e dirigiu-se abruptamente na direção da vítima. Sacou o pacote dos quartos, desembrulhou-o e disparou: “Perdoa, meu amor”, segurando uma cocada sofrida na mão. Gilson ajoelhou-se mais uma vez como fizera no dia em que nunca se casaram. O pedido atingiu Regina Maria entre os pulmões, causando-lhe uma súbita falta de ar e um grito mudo na boca do estômago. Vitimada por uma onda de amor fulminante, ela caiu em seus braços arrependidos. O caso flagrante foi registrado na 16ª DP, e os acusados de “formação de casal feliz” foram liberados para responder em liberdade.

2 comentários:

serelepe disse...

como leitora, digo q é mais um texto interessante, com os joguinhos divertidos de sempre.

como solteira, fico feliz por não ser acusada de crime nenhum, ou triste...

como metida, acho q não colocaria o parêntese. destoou.

parabéns de novo. guardarei o elogio para a próxima vez. pra não ficar repetitivo.

Anônimo disse...

Aconteceu algo parecido lá perto de casa. Nós avisamos. Ele sempre dizia: "Eu sei o que tô fazendo. Tu acha que eu vou me deixar enganar por essa rapariga? Tu é doido, é?" E sempre lá, os olhos perdidos, seguindo alucinado o ritmo das ancas de Fernanda, quando ela andava.
Um dia acordei com a polícia na porta da vizinha. Fui ver. Tava lá: o IML recolhendo o corpo dela, e ele algemado no banco de trás do carro da polícia. Olhou pra mim, mas não via mais nada. Só um branco, como se a cegueira fosse branca.
Quando a polícia se foi, me inteirei do caso: ele havia perdido o emprego. "E por causa dela, ainda mais."