quarta-feira, 1 de julho de 2009

A Culpa

Durante os dias, perambulava abatido, com a batina lhe pesando negra sobre os pensamentos. Embora ela não contasse mais de treze primaveras nas contas do rosário, queria conhecê-la numa noite infinita, sem céu nem inferno. O ministério sucumbia cada vez mais aos mistérios que o atormentavam. Ela tinha um rubor perverso nos lábios, mesmo entoando canções sacras. Sem conseguir olhar diretamente as janelas de sua alma simples instaladas no seu rosto, adivinhava suas formas sob o vestido, seios firmes e quadril sinuoso. Por mais de uma vez, teve oportunidade de lhe propor sua vergonha, mas a culpa puxava as rédeas de seu colarinho branco, sem mácula visível, e sufocava palavras proibidas: bunda, peito, sexo. Precisava absolver-se, achar um dono para sua culpa. Livrar-se dessa santidade leprosa que o deixava intocável. Ela era a dona do seu pecado, a própria culpa. Sim, sim. Sua indiferença coberta de pudor era apenas o disfarce de uma Vênus febril, ele tinha certeza agora. Seus olhares despropositados, sua roupa discreta e folgada, seu jeito comportado... sim, era tudo uma provocação. Não era culpa dele. Convenceu-se. Na quinta, após o discipulado, do alto de sua autoridade chamou-a para exortá-la. Era sua obrigação divina. Cobrindo-a de maldições infernais, desabotoou-a de sua religião e despiu-se de sua reverência. Toda punição era pouco, mas ele haveria de ser brando em nome da misericórdia. Sem entender, ela angustiava-se ante o paradoxo de sentir nojo de seguir a orientação “divina”, a obra que lhe renderia sua própria salvação. Ao fim, sua alma confusa não se sentia redimida. O medo de um inferno era grande, mas a verdade lhe gritou tão desesperada para que abrisse seus olhos, que ela sentiu algo errado e tentou fugir. Com o dobro de sua força e um terço nas mãos, ele a agarrou. O terço estrangulava aquela trombeta que ia anunciar sua condenação. Era a extrema unção de seu pecado. Restava achar uma pá e enterrar não a sua culpa, mas a dela.

9 comentários:

Unknown disse...

Perfeito. Quando eu crescer quero escrever assim...

Catastrótico disse...

A culpa sempre é o ultimo dos prazeres dos gozadores, mas convenhamos, se deus fosse contra a paquera, não teria dado tanta mobilidade ao pescoço... Não tem muito a ver com o assunto, mas é interessante lembrar, que na catalogação dos pecados capitais, os padres esqueceram de incluir o capital, propriamente dito..

Malthus disse...

O prazer de pecado, nenhuma virtude consegue igualar. Massa o texto, monstro.

Juliana disse...

Fiquei ate arrepiada...:S

Raquel disse...

WOW... speechless

Unknown disse...

Engraçado essa história de achar um dono pra sua própria culpa...

ConsuL

Luiziana disse...

Muito bom!
Vejo algumas de nossas conversas em alguns momentos, fico feliz.
Me lembrou um filme Irlandês chamado "Em nome de Deus", fica a dica!
Parabéns.

Andrea disse...

=)

Lécio disse...

Seguindo a dica de leitura que você mesmo deu e aproveitando os minutos do lanche, aproveitei pra ler mais o Manual. Você julga o texto anterior (Palavras) menos inspirado, mas pra mim estão todos no mesmo alto nível. Este conto é cortante. Acho o estilo muito arretado, a linguagem perturbadoramente rica e os temas... Bem, com essa facilidade de narrar, os temas parecem simples pretexto para impregnar significados na linguagem. Boa literatura. Muito boa literatura. Sim, o que acho de mais forte nos textos é a última frase. Parecem uma pedrada... Cultiva isso como marca.