terça-feira, 23 de março de 2010

Pequenos Deuses

Uma mãe olha profundamente. Na outra ponta desse olhar, uma criança descansa plácida, como sempre fazia após um dia inteiro de cansativas travessias entre mundos imaginários. A mão da mulher repousa sobre o peito da menininha, eletrificando a ligação mística e ancestral dos animais com seus filhotes. Fecha os olhos e sente o cheiro de lírio do ambiente potencializado pelo lítio que corre nos seus humores. Os cabelinhos viçosos resfolegam energia, saúde e felicidade. A mãe tenta entender como aquele pequeno ser, com todos os seus desmandos e malcriações, faz com que sua vida faça sentido. Que mistério carregam as crianças em sua disposição infinita para a vida? Essa vida que se esfumaça ao passar dos anos, no processo de cauterização do corpo. A velhice, não há dúvida, é o processo de imortalização do humano: a solidificação de suas articulações, ressecamento dos músculos… é transformação do homem em estátua. Depois, essa rocha se desagrega em pedaços cada vez menores até que ele viva para sempre no nível atômico — o pó. Mas a menininha era o oposto disso, suas mãos mínimas tinham o poder de criar castelos enormes de areia ou destruir civilizações inteiras de formigas. Gatos e cachorros estão sempre aturdidos diante da intrepidez infantil, sem reação, tentando compreender a coragem de agarrá-los como a pelúcias inofensivas. Suas pernas são tornados em miniatura na devastação das plantações de margaridas. A criança é mesmo um pequeno deus das coisas da terra. Essa divindade telúrica se despedaça, porém, diante da água: o elemento vital desbarata seus poderes, manipulando-a qual peão inerte nos dedos ágeis das ondas, nos braços fortes das correntezas. Para esses pequenos deuses, a água é a morte. Enquanto pensava nisso, a mãe sente um suave toque no ombro. Era hora de ir. Sem derramar uma lágrima, num ressequido protesto contra os mares do mundo, ela se debruça sobre aquele pequeno corpo para dar-lhe seu derradeiro e mais tenro beijo de boa-noite.

6 comentários:

Unknown disse...

Ficou mais claro agora o trecho da água. A pessoa que sabe escrever é outra coisa, né???
Beijo pra tu!

Liliane disse...

Foi um texto lindíssimo que meu lado materno leu com um sorriso até a penúltima parte... No final, a futura mãe em mim não pôde reprimir o aperto na garganta... O que indica um fato incontestável: a sensibilidade de quem escreve um texto assim. Muito bom, Heber. Beijo.

Malthus disse...

Velho, me surpreendeu. Muito bom, cara. abraço

Raquel disse...

Primeiro achei estranho vc estar escrevendo sobre algo tao ensolarado como uma crianca. Mas aquele cheiro de lírio me alertou, nao era possível q vc escrevesse algo q nao fosse envolto pela energia sombria da destruicao. Eu estava certa. E o texto eh belíssimo. Bjs

Tempo Temporã disse...

Incrível como é sensível a sua escrita. Ao falar da velhice e da infância. São tantos os humores, são verdadeiramente muitos...

Nadiana Lima disse...

Faço minhas as palavras de Lili. =) Beijos!