sábado, 5 de junho de 2010

Lili-fut

Houve uma vez um homem sábio, um filósofo-cientista, cujo único propósito era descobrir os segredos da natureza e preocupar-se com questões maiores do que a vida cotidiana. Chamava-se Galilóide. Certa ocasião, quando viajava pelos cinco mares (nem todos haviam sido descobertos ainda), sua embarcação perdeu o norte e, sob tormentas devastadoras, sucumbiu. Eis que Galilóide, por um capricho do acaso, foi o único sobrevivente do infortúnio. Quando acordou, estava numa ilha, mas não deserta. Olhavam para ele curiosos nativos. Em uma espécie de diário que mantinha — fonte única deste relato —, Galilóide registrou: “Tinham a cabeça muito pequena, como os pigmeus de Bora-Bora, mas a compleição física era robusta como a de um montanhês do Piamonte”. Dono de habilidades lingüísticas incontestáveis, em poucos minutos de observação o filósofo concluiu que falavam uma espécie de galego ou occitano, línguas em que Galilóide só não era mais fluente porque não lhes dedicou tanta atenção quanto ao toscano. Pôde então descobrir o lugar era chamado de Lili-fut e que, afora atender às necessidades fisiológicas, a ocupação exclusiva desse povo ágrafo era se entreter com um jogo que consistia em propulsionar um objeto redondo, apelidado balo — na verdade, fibras de coqueiro enroladas à maneira de uma bobina, mas como meridianos — através do espaço adversário, demarcado por dois troncos na vertical. A princípio, talvez pelo seu espírito científico, o jogo pareceu até interessante a Galilóide. No entanto, após cerca de uma hora e meia, tempo médio da peleja medievalesca, o sábio já estava enfadado. Curiosamente, esse foi o tempo exato que levou para os nativos começarem a perder seu interesse fugaz pelo cientista. Enquanto manteve sua boca fechada, Galilóide pôde estudar livremente a estrutura social dos nativos e percebeu que, enquanto o grosso da população esfolava-se na extração vegetal e atrás do rotundo objeto, as realezas tribais consumiam as melhores guloseimas e deitavam-se com as mulheres mais bem-apessoadas. Humanista que era, o sábio indignou-se com a situação daqueles ignóbeis seres humanos e começou a propagar aos quatro ventos sua constatação: em Lili-fut, o balo era só um engodo. Mas anos de sedentarismo cerebral fizeram com que a debilitada mente dos lilifuteanos falhasse até mesmo em alcançar as não tão complexas elucubrações do filósofo-cientista, e as palavras dele caíram ao vento e foram carregadas pelos pelicanos para longe de suas atenções. Ao que parece, algum vento ou pelicano deixou cair sobre os ouvidos dos príncipes o que o estrangeiro andava apregoando. Na última entrada de seu diário, memórias escritas no cárcere, Galilóide registra que foi instituído um tribunal para julgá-lo pelas calúnias contra a única expressão da cultura nativa — a saber, o lili-fut-balo. E disto não há dúvida: sua sentença foi de morte.

3 comentários:

Liliane disse...

Devo continuar te chamando de Heber ou devo acrescentar alguma coisa como Swift? Este conto é uma mistura perfeita do país dos Howumins [n lembro se é assim que se escreve] com Liliput e a ilha flutuante dos intelectuais. Muito bom, Heber. Parabéns. Beijos.

Malthus disse...

Me lembrou o Borges, com seu Carriego. Muito bom. Abraço

Nadiana Lima disse...

O mais difícil, com certeza, é superar-se. Mas sempre tenho a impressão de que essa máxima se esfarela - a despeito do que diz a consciência sobre o fazer literário - cada vez que venho aqui. Parabéns, Heber! Mt bom o texto! Beijos.