sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Esquecimento

Esta senhora mantém uma rotina todos os dias. Acorda e joga por cima dos ombros as flores do xale, espalhando um perfume antigo. Vai ao quarto do filho, passa a mão por sobre a colcha já forrada aplainando quaisquer imperfeições como quem pede desculpas ao silêncio, como quem limpa uma memória de suas tristezas. Arruma uns lápis de cor que o rapaz nem usa mais tentando manter intacta uma infância que se foi de mãos dadas com a crueza da necessidade. Na sala, troca por outras novas as margaridas que já começam a perder do viço. Há algo que a perturba naquelas pétalas enrugadas e enegrecidas, intempéries de uma vida que andou demais na má companhia do tempo. E assim, por alguma brecha entre as grades dos afazeres de casa, todas as tardes o dia escapa despercebido, carregado pedacinho por pedacinho pelos fótons do último raio que o sol lhe jogou — último como todo raio e todo instante sempre é. É por volta desse horário que a senhora remexe a panela com a réstia de vigor que as mães usam à tardinha para se recomporem quando as chaves começam a chamar na porta da frente. E esta senhora não é diferente. Então, ela coloca dois pratos na mesa e espera pacientemente. Hoje, porém, há algo errado. Hoje, pela primeira vez, essa senhora colocou apenas um prato na mesa. Ela nunca havia esquecido. Um ano, dois meses e doze dias. Ela nunca havia esquecido. O rapaz não senta mais naquela cadeira para a qual ela agora olha fixamente, num misto de culpa e indiferença. O lugar vazio, onde sentava aquela morte que amanhecia todos os dias, foi ocupado pelo esquecimento, que entrou sorrateiro pela porta aberta da rotina. Hoje a vida descobriu que a morte vive apenas na lembrança. Hoje uma senhora descobriu que a morte nada mais é que o primeiro passo da lembrança rumo ao esquecimento.

3 comentários:

Santino Mendes disse...

Curti a arte! ... Tem uma relação muito grande com uma coisa q ouvi de um brother falando de uma canção de chico buarque.... "saudade é arrumar o quarto do filho que já se foi"...

Excelente texto, Heberon!!!!

Andrea disse...

Lindo, li e só me lembrava de Osman Lins. Parece muito com o estilo dos contos dele em "Os gestos". Essa atmosfera da perda e como lidar com isso. Fico preenchida de admiração a cada nova experiência literária sua. Minha missão para 2012: forçar sua pessoinha a lançar um livro de contos.
amo tu!

Malthus de Queiroz disse...

Bóra, monstro. Massa o texto. Me lembrei do Chico Buarque e seu "pedaço de mim". abraço