domingo, 21 de agosto de 2011

O Sorteio

de Shirley Jackson (1916-1965)
(Tradução de Heber Costa)

A manhã do dia 27 de junho estava clara e ensolarada, com a frescura quente desses dias de verão; as flores desabrochavam aos montes, e a grama rebrilhava de tão verde. O povo do vilarejo começou a se ajuntar na praça, entre o correio e o banco, por volta das dez; em algumas vilas, tinha tanta gente que o sorteio levava dois dias para terminar e tinha que começar logo no dia 2 de junho, mas nessa, que tinha somente umas trezentas pessoas, o sorteio acabava em menos de duas horas, daí que, se começasse às dez da manhã, ainda dava para os moradores chegarem em casa a tempo para o almoço.

As crianças, é claro, se aglomeraram antes de todo mundo. A escola tinha fechado para o recesso do meio do ano. Quase todas estavam com uma agoniada sensação de liberdade. A tendência era chegarem caladinhas, ficando assim por um tempo, para depois começarem com algazarra. A conversa ainda era da escola e da professora, dos livros e dos carões que levaram. Betinho Martins já tinha enchido seus bolsos de pedras, e os outros meninos logo fizeram o mesmo, escolhendo as mais lisas e redondas. Beto e Ari de Jenésio e Dico de François — que o povo dizia “Franssóis” — acabaram juntando uma pilha bem grande de pedras num canto da praça e protegiam ela das botadas dos outros meninos. As meninas ficavam meio de lado, proseando umas com as outras, olhando os meninos por cima dos ombros. As crianças pequenininhas embolavam na poeira ou então seguravam na mão do irmão mais velho.

Pouco tempo depois, começaram a chegar os homens, cada um de olho nos seus filhos, falando de plantação e chuva, de tratores e dos impostos. Ficavam juntos, longe da pilha de pedras que estava no canto; suas piadas eram discretas, e eles mais sorriam do que riam. As mulheres, com seus vestidos de casa desbotados, chegaram pouco depois dos homens. Elas se cumprimentavam e fofocavam um pouco antes de irem para junto do marido. Daí a pouco, já perto dos homens, começaram a chamar os filhos, e eles vinham fazendo birra, depois de serem chamados quatro ou cinco vezes. Betinho Martins deu uma cabriola e escapou da mãe, que tentava pegar ele com a mão esticada, e voltou para a pilha de pedras. O pai ralhou com ele, e Betinho veio correndo e ficou no lugar dele, entre o pai e o irmão mais velho.

Quem organizava o sorteio — assim como as danças no arraial, o clube dos jovens e a quermesse — era Seu Samuel, o único que tinha tempo e energia para cuidar das atividades cívicas. Era um sujeito bonachão e jovial que tinha um negócio de carvoaria. As pessoas tinham pena dele porque não tinha filhos e a mulher lhe aporrinhava o juízo. Quando ele chegou na praça, carregando a caixa preta de madeira e acenando e falando, o burburinho aumentou entre os moradores. “Um tiquinho atrasado hoje, compadres.” O responsável pelos correios, Seu Geraldo, seguia de perto levando um tamborete de três pernas. Ele colocou no meio da praça, e Seu Samuel colocou a caixa preta em cima. Os moradores ficavam meio distantes, deixando um espaço entre eles e o tamborete. Quando Seu Samuel perguntou “Algum compadre pode dar uma mão aqui?”, o pessoal ficou meio ressabiado, até que dois homens, Seu Martins e o filho mais velho, Jessé, vieram segurar a caixa enquanto Seu Samuel remexia os papéis que estavam dentro.

[...]

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Um comentário:

Lécio Cordeiro disse...

Muito bom, Heber. Como sempre. Mesmo sendo de autoria alheia, vejo aí claramente o vosso dedo tradutor...