domingo, 24 de fevereiro de 2008

Gentes Brutas (ou A Propósito do Charme)

O bicho-gente parece ter sido feito pra ser algum tipo de estranho de cristal, cujas moléculas deveriam ser perfeitamente organizadas, mas a convalescença da vida, com suas tantas variantes, sempre deixa alguma coisa fora do lugar. Assim, nesse puxa-daqui-puxa-de-lá, ficamos eternamente desfocados. Sob a luz, revelam-se gentes brutas, não lapidadas, de um brilho difuso e duvidoso, tentando se estruturar e transparecer toda a perfeição inexistente. Falando nisso, vale dizer uma ou duas coisas sobre o charme. Esse fator muitas vezes substimado é algo que se revela bem mais complexo, como quase tudo que é mais sentido do que visto. Charme (do latim, carmen, "feitiço, fórmula de encantamento") é uma questão de confiança, muito mais do que de beleza. A segurança (na acepção de confiança) — na minha opinião, um dos vértices do nosso ser poliedral — é uma das coisas mais atraentes que existem. Não devo retornar às geladeiras (vide post mais abaixo), mas pode-se comentar en passant que a questão recai novamente sobre garantias. Por que a independência, a segurança e a confiança (elementos-chave do charme) são tão cativantes? Queremos outros independentes, que não se ancorem em nós? Queremos nos ancorar nesses outros? Mais do que perguntas, são fatos. Sinto falta disso. Há dias em que refrato difusamente a luz que chega a mim; sem a transparência da segurança, como se conspurcasse a luz ao tocá-la, sem charme algum. A magnitude do charme está na sua perenidade; ou seja, ao contrário da beleza, que é efêmera e limitada, o charme ultrapassa as barreiras de idade, simetria e sexo. No fim da vida, mesmo os idosos mais belos carregam apenas uma caricatura da beleza que existia antes, uma arquelogia dela, que na verdade, fica no fundo dos olhos, e não mais espalhada pelo corpo. O charme é belo em essência porque está relacionado a — com o perdão do inevitável cliché — amar vida (lato sensu, e não apenas a própria vida), com tudo que ela tem, lembrando Vinicius de Moraes, de choro, beleza, violência, alegria, traição e... amor. O charme tem cheiro, cor, carga elétrica e é percebido simultaneamente por todos os nossos sentidos. É a refração perfeita da luz, é um paradoxo refração–reflexo. É aparência da estruturação perfeita de um ser.

2 comentários:

Anônimo disse...

Massa, monstro. Du caralho esse post. Me lembrou Jorge Luís Borjes. uhuuuu

Anônimo disse...

Borges. hehehe