quarta-feira, 16 de julho de 2008

Depoimento de um Palhaço

Rostos, caras e faces... dali do picadeiro, essas palavras não encontravam forma em nada: a platéia era um ninho de bocas escancaradas, esperando migalhas da pantomima que eu iria fazer. Fazia quinze anos que eu alimentava aquelas bocas com alegria e me mantinha faminto, esquelético de qualquer forma de afeto. Quase sempre, ficava do lado de fora da grande lona, olhando o céu e procurando piadas entre as estrelas. Por algum motivo, nunca me fizeram rir. Acho que é porque o céu é como um espelho: você acha que ele está lindo, mas é você quem está feliz. Já maquiado, enquanto fumava um cigarro sentado no baú do mágico, eu esperava todos os dias por um milagre ou uma magia que fosse. Ironia das ironias, o circo é o lugar onde a mágica só acontece para quem está do outro lado. Não me levem a mal, eu amo o que faço. Mas, do lado de cá, a arte de subviver de circo já parecia milagrosa demais pra esperar qualquer coisa além disso. Às vezes, pensava se um dia o trapezista ia cometer um deslize e cair em cima de mim, um palhaço espalhafatoso e desengraçado. Isso, sim, ia ser um grand finale de verdade. Um dia, quando entrei no picadeiro, senti que alguma coisa havia mudado. Os holofotes não apontavam para mim, mas para a moça na terceira fila. Os limites de seu corpo eram a fronteira entre a luz que emanava dela, iluminando meu rosto, e a escuridão esfomeada do todo-dia estampada em cada face da arquibancada. Uma esperança raquítica, mas decidida, acendeu-se por dentro da minha fantasia. A boca dela não se escancarava, pedindo; apenas sorria, oferecendo. Soltei uma piada triste, e ela me respondeu com um riso sincero que se perdeu no meio das gargalhadas em redor. Foi assim que as estrelas me ensinaram a sorrir do peito para os lábios. Foi assim que comecei a me fazer rir. Agora jogo malabares somente com as meninas-de-seus-olhos, conto anedotas só para seus ouvidos, equilibro-me apenas em seu corpo. Foi assim que ela se tornou minha única platéia.

Imagem: Antonis Sarantos

7 comentários:

Catarina de Queiroz disse...

O amor torna a mais desiludida das pessoas um ser grandioso, capaz de tudo. Bj

Malthus de Queiroz disse...

Muito bom o texto, velho. É muito bom fazer a pessoa que a gente ama sorrir. Abraço

Thays Brayner disse...

Nossa, amei o texto....muito bom. De verdade, um dos melhores que já li. Bjão.

Unknown disse...

Vou passar por esse blog deixando as palavras do maior palhaço que conheci, Charles Chaplin:

"Durante a nossa vida:
Conhecemos pessoas que vem e que ficam,
Outras que, vem e passam.
Existem aquelas que,
Vem, ficam e depois de algum tempo se vão.
Mas existem aquelas que vem e se vão com uma enorme vontade de ficar..."

"Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço mas jamais duvidei da sinceridade da platéia que sorria."

Catarina de Queiroz disse...

Simpática a foto!

Theo Costa disse...

Grande Heber, já tem dois escritores que eu tow esperando um livro, tu e mal-thus.

Grande abraço,

theo

Enoide disse...

Olá!
Parabéns pelo texto, o indiquei em uma publicação do meu blog.
Espero que não tenha nenhum problema, rsrs.
http://eculpadosistemalimbico.blogspot.com.br/2012/04/das-desvantagens-de-ser-palhacoa.html
Lendo outras postagens, escreves muito bem.
Abraço!