sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Aquele que Dorme no Vale

Arthur Rimbaud (tradução livre de Heber Costa)

É num estreito verdejante em que canta um rio,
Decorado com arbustos em farrapos prateados;
Que, sobre montes altivos, brilha o sol alfario:
Um pequeno vale onde caem raios espumados.

Um jovem soldado, de boca aberta, sem chapéu,
E a nuca apoiada em frescas azaléias azuladas
Dorme, deitado na relva, sob o manto do céu,
Plácido, num leito verde com gotas iluminadas.

Com os pés nos lírios-espada, dorme, brando.
Sorrindo como uma criança doente delirando.
“Natureza, aquece-o, pois frio tem feito.”

Suas narinas estão indiferentes a qualquer perfume;
Ele dorme ao sol, tranqüilo, qual espada sem gume,
E com dois buracos vermelhos no peito.


Original:
Le Dormeur du Val

C’est un trou de verdure où chante une rivière,
Accrochant follement aux herbes des haillons
D’argent ; où le soleil, de la montagne fière,
Luit : c'est un petit val qui mousse de rayons.

Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue,
Et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
Dort ; il est étendu dans l'herbe, sous la nue,
Pâle dans son lit vert où la lumière pleut.

Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
Sourirait un enfant malade, il fait un somme :
Nature, berce-le chaudement : il a froid.

Les parfums ne font pas frissonner sa narine ;
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine,
Tranquille. Il a deux trous rouges au côté droit.




Em homenagem ao Dia do Soldado, 25 de agosto.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Terra Arrasada

3 da manhã. O relógio era só o marca-passo da minha insônia, e eu enfartava a cada tique. Queria que ela voltasse. Há um ano estava longe — e se afastava cada vez mais. A distância que nos separava era ligada apenas por uma ponte de olhares cruzados na mesa do jantar, balançando insegura sobre um abismo de silêncio. A saudade de quando eu e ela éramos nós pesava sob meu travesseiro como uma arma carregada de uma esperança de chumbo. Restava dar um tiro no escuro. Mas eu apenas olhava fixamente o teto, projetando cenas em preto-e-branco do filme cego da felicidade, memórias que se esqueciam de mim a cada dia, indo embora sem se despedir. Era assim que passava o trem das noites em direção ao túnel que não tinha fim — muito menos luz. Isso não podia continuar. Olhei. Uma indiferença bela e imóvel dormia ao meu lado. Num último impulso, minha mão minha fez uma jornada para o velho oeste de nossa cama, passou pela fronteira e tocou algo frio. “Que foi?”. “Nada”, eu disse. De costas, seu corpo era alheio, estranho, uma lápide sem palavras que marcava nossa vala comum. Enterrado até o pescoço, olhei conformado a esperança ir embora pela porta que o amor deixara aberta. Na janela, o sol nascia pela última vez sobre essa terra arrasada pela praga do tempo. Restou só um deserto — e dois estrangeiros numa terra de ninguém.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Desamor

Do alto da tua torre de cal e giz, um sólido apartamento de três quartos, observo os carros quilômetros abaixo: glóbulos brancos e cinzas que pulsam no corpo da cidade morta. Aqui o conto-de-fadas desencantou. Meu pesadelo… caindo, caindo, da tua janela, e tu não jogas tuas tranças nem me acordas com teu beijo. Um vento frio me leva para o inferno lambendo lascivamente meus cabelos e regelando meu hálito, antes cálido de teu sopro. Foi tu quem me empurraste, eu sei. Liberto das tuas masmorras, eu morro. Súbito, sou só eu e um nada que nunca termina de cair sobre mim. Vejo teus braços estendidos, cristalizados numa pose que pode ser um querer alcançar e um querer largar. Ambígua, como tu fostes todavida. Essa fotografia de tua alma não tem aura, nem brilho estranho. Apenas um negrume preto-e-branco que sai dos meus olhos desiludidos. Enquanto caio, observo os que voam, sustentados em asas invisíveis, plumadas de sonhos macios. Lanço-lhes uma maldição, desgraçados. Se ao menos eu parasse de cair, se uma corda me laçasse — nem que pelo pescoço —, eu deixaria de sentir. Mas nada muda, teu sapato nunca foi de cristal. Era apenas um vidro sujo que embaçou meus medos e embalou minhas paixões mais insensatas, como sempre serão as paixões. Enfim, tua voz me chama e me diz: “Melhor você ir embora agora”. Portas descem e elevadores se abrem lentamente. Antes a morte súdita, súdita da minha vontade. Mas não. É só isso. Nada de drama. As luzes não se apagam, e a cortina não desce. Sou só eu, nu, num palco frio, humilhado, exposto à pena e ao desprezo do meu único público: teu desamor.