domingo, 3 de abril de 2011

Bloqueio criativo

O cenário era propício. Aquele velho escritor sempre criava uma atmosfera para começar a escrever. Era um jazz encorpado e um vinho tinto harmônico dançando enebriantemente até que a ideia chegava, atrasada e meio bêbada, como sempre. Havia qualquer coisa de semelhante entre aquele homem na penumbra e aquela abelha rondando a lâmpada do teto na esperança de chegar a uma luz. À sua frente o branco insuportável de uma página vazia no computador iluminava o rosto impassível dos que não conseguem mais escrever. Fazia tempo que o escritor recorria a artifícios para dar conta da fome insaciável dos leitores pela mítica inspiração. Afinal, o que é a inspiração senão um esforço para digerir a realidade e regurgitá-la com algo de si? Havia algum tempo que cansara de fingir. Alguns acham que o escritor finge para a sociedade e se revela à literatura. Mas ele sentia que nunca havia parado de se inventar e o que inventava, na maioria das vezes, pouco tem a ver consigo próprio. Alguns críticos com mais vocação para biógrafo (se é que há algum dom que contemple essa profissão parasitária) e um gosto mórbido por adivinhas haviam esquadrinhado sua obra buscando descobrir porque ele usava chapéu até em ambientes fechados ou de que lado da cama ele dormia. Parece que tudo isso era mais importante que a mera literatura das suas palavras impressas. Esse homem tinha atingido um estágio em que a crítica tal como se pressupunha não mais existia para ele: ter seu nome assinado no fim da página significava ou a aprovação ou a rejeição absolutas. A leitura das palavras em si se tornara nada mais que formalidade, confirmação inócua de conceitos petrificados — positivos ou negativos — a respeito dele. Pode existir algo mais triste para um escritor do que ignorarem suas palavras? Não havia mais sentido em escrever, mas uma náusea profunda o obrigava. Há tempos queria ver-se liberto disso, desse gozo aflitivo, dessa ânsia prazerosa, que sobrevinha quando seus dedos uniam as letras desnaturadamente separadas no teclado. Deixara tudo na vida pela escritura: família, amigos, mulheres. Suas obras lhe deram sua fama, e sua fama lhe deu um tudo com gosto de nada. Foi com esse gosto que acordou naquela manhã e quando sentou-se insosso na mesma cadeira. Agora, junto com o crepúsculo, caiu sobre ele um alívio na forma de um bloqueio criativo. Aquele rosto imóvel e pálido desde as primeiras horas da manhã trazia uma revelação: um escritor liberto da literatura pelo último bloqueio de sua vida.

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