sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O Espelho

Olhava-se pela terceira vez no espelho, espantada. Sua pele parecia opaca, e os poros abertos. Cansava-se daquela verdade cruel do espelho. Todo sorriso era um arco de cera que só esticava uma tristeza fina de canto a canto da boca. O resto do corpo, não tinha coragem de olhar. Já sabia que veria aquelas escamas flácidas. Não era de admirar: estava no auge dos seus 22 anos. Já era uma anciã da adolescência, prestes a falecer para a idade adulta. Não sabia quando nem como nem onde envelhecera tanto. Sabia. Foi em Ricardo. Foi sem Ricardo. Ali, sim, estava viva, jovem. Sem as mãos dele, seus seios pareciam murchos, pequenos. Sua cintura, reta. Nenhuma curva se apresentava ao seu próprio toque, e o espelho — absolutamente simétrico, não há dúvida — não desenhava sequer uma vírgula que pontuasse aqueles quadris desinteressantes. Sem aquele amor, era um ser disforme; como se o amor não estivesse por dentro, mas envolvendo-a, modelando-a. Em algum momento, não sabe como — talvez enquanto rodopiava e rodopiava despreocupadamente naquelas mãos que lhe davam forma —, o oleiro desviou os olhos de si, descuidando dela por um ou outro motivo insípido, fazendo-a perder o ritmo e se perder, deformada e encolhida, numa bolota de abandono. O que não daria para fechar os olhos, esquecer sua imagem na sinceridade nua do espelho, sentir aqueles braços em seu redor, por trás, pelos lados de sua cintura, dando-lhe corpo. Mas, agora, tudo que tinha diante de si era ela mesma e, claramente, não se bastava. Buscando na sua figura qualquer semelhança de como era enquanto amor. Não encontrava... Mas... e se o espelho, na sua perfeita mentira, a enganara? Esperança. E se dançasse novamente? Talvez, num súbito demi-detourné, tomasse forma novamente o seu balé, e seu corpo se firmasse, sem que força alguma lhe fosse modelo, senão seu próprio rodopio. Não precisava de espelho algum para lhe dizer que forma tinha. Não tinha forma alguma... e não precisava ter. Tinha a sempre mutável forma da beleza. Mudava sua forma a cada instante com as curvas que fazia com seus braços enquanto, de olhos fechados, se esticava apenas com a ponta dos pés no chão do banheiro. E nada — nenhuma mão, nenhum braço — limitava a leveza de sua figura.

Imagem: North Star (1902), de Alphonse Mucha (1860–1939).

3 comentários:

gr disse...

porra, Heber, muito bem escrito e bem pensado! sou meio preguiçoso às vezes pra ler, mas se os textos estiverem nesse nível, certamente o blog vale a visita!

um abraço e feliz 2008!

serelepe disse...

uhuuu!
já consigo ouvir o bater das palmas!

isso sim é um caleidoscópio! um espelho bem bonito de se ver.

parabéns!
ficou lindo, lindo!

você também deveria escrever mais. ;D

Luiziana disse...

Ah! eu já sabia...!
Amei, escrevendo no estilo que eu gosto, neh?! safadinho! rsrsrsrsrs