quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Fogo

Depois de estar vivo por quase dois dias, abandonou-se a uma liberdade precária: comia o que lhe dessem e andava por caminho que se lhe oferecesse, como se caminho fosse coisa que se cria em vez de existir antes. Não importava muito. Nada importava nada, quanto mais muito. Tinha fome de um sorriso amigo, mas só encontrava a miséria nos rostos alheios (talvez mais famintos que ele próprio). Foi quando decidiu beber. O ardor quente e seco do gim lhe inundava o espírito, por segundos, de paixão e de um sabor ligeiramente azedo — que era o mais próximo do que ele conhecia por felicidade. Mas era só um triste engano. Era a negra boca da solidão que o carcomia, consumindo lentamente sua forma e força. Seu corpo queimava por dentro nas faíscas oriundas do atrito entre suas últimas esperanças e a aspereza do que via em derredor. Daí confundir a angústia de combustão lenta que sentia com a secura fervilhante do álcool e a acidez de sua gastrite. Ainda assim, era esse o combustível que o movia. Apenas ia, desafiando a transitividade do próprio verbo. Ia. Sentia que se parasse, seria tolhido por uma força muito maior que ele, vinda de si próprio e dirigida contra ele mesmo: implodindo. Não era um vazio que sentia. Era vácuo. Algo que ameaçava (na sua força gravitacional de grandeza astronômica) encerrá-lo dentro de si próprio e comprimi-lo a um espaço menor do que um coração. Fosse o que fosse, sabia que era o fim. Consumiu-se no último cigarro enquanto a calçada estreita dançava à sua frente ao ritmo das treze doses de gim e tônica que tomara. Subitamente, a calçada escureceu e alargou. Pode ver uma luz doce e convidativa que se aproximava, enchendo seu peito de alívio. Não importava o que era (como disse, nada importava). Importava apenas o que debelasse aquele fogo-fátuo de ansiedade e memória em sua alma. Sentiu a brasa da bituca queimar seu lábio. Deixou. Esperou. Enchendo-se pela última vez de luz, mantendo os olhos abertos até o fim.

Ninguém entendeu o que fazia aquele sujeito no meio da rua quando foi atingido, mas quem assistiu à cena garantiu ao menos uma coisa: ele sorria como se nunca tivesse sorrido.

2 comentários:

Anônimo disse...

É... muito bom!

Anônimo disse...

Massa, velho. Gostei pra carái desse texto.