sábado, 12 de janeiro de 2008

Rotina

e ia dormir. Logo começava o mesmo dia novamente. As mesmas roupas, vazias de Estevão, entravam nos mesmos sapatos velhos. Sua camiseta branca suja e esgarçada nem na palavra lembrava as alvas garças do porto onde carregava, todos os dias, seu quinhão da vida. Pegava o ônibus cheio e segurava firme na barra de ferro e agüentava os sacolejos até a última parada da rua dezessete de novembro e suportava os olhares e descia sem tomar um gole de fôlego. Uma vez no porto, desligava. Arrastava-se no curto espaço de 15 metros entre o monte de sacos e o mesmo caminhão vermelho (eram todos iguais) centenas de vezes durante o dia naquele indo-voltando automático. Eram mesmos metros que, irônica e diariamente, viravam quilômetros. Curvado, saca nos ombros, olhos no chão, conhecia cada palmo daquele caminhozinho de terra infinito. Às vezes, olhava de lado, invejando aquele mar hostil e a imunda beira do cais e sentia uma tristeza. Era a vida que passava por ele, faceira e debochada, no rosto dos namorados do cais e dos velhos que entupiam os pombos com as sobras dos sacos de cereais. À tardinha, com o pôr-do-sol sobre as costas, voltava. Se ainda houvesse alguém a lhe esperar, um beijo para molhar seu cansaço, carregaria alqueires de sonhos e sacas de lembranças, todos os dias, com um sorriso descabido dentro do peito. Mas não havia. À noite, então, um cigarro de palha pensativo, um gole de cachaça sem vida e ia dormir.

Um comentário:

Unknown disse...

Que texto lindo!adorei!