quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Rotina e Anitora

Esposa, filhos, gato e jornal. Tinha tudo que poderia desejar. Não era um conceito abstrato estampado com a tinta preto-hipocrisia em camisetas brancas, mas a paz verdadeira. Beth recortava revistas de moda. O gato ronronava no sofá. As crianças encenavam histórias com caixas de sapato e pedacinhos imaginação. Visto da janela de casa, os dias nublados não passavam de nuvens branquinhas brincando pelo céu ao alcance dos braços luminosos do sol. Enfim, o mundo era somente um detalhe que tentava invadir pela fresta que se abria quando ligava a televisão.

Mas um dia, num relance desinteressado, olhou panoramicamente a sala. O que viu criou um ponto negro na sua alma: Beth recortava revistas de moda. O gato ronronava no sofá. As crianças encenavam histórias… Começou a criar um rancor das crianças repetindo as mesmas histórias, de Beth recortando mil revistas iguais, do gato que dormia no mesmo canto todos os dias nas mesmas horas. O mundo começou a penetrar pelo ponto negro e enraizar-se num ódio. Olhava outras mulheres, chutava o gato, deixava as crianças de lado. O rancor da rotina reverteu-se numa raiva que rosnava contra todos. Mas os dias se sucediam implacavelmente: Beth rasgava revistas de moda. O gato escondia-se embaixo do sofá. As crianças encenavam histórias sobre brigas de casal.

Apareceu então Anitora, uma mulher que não se repetia: nunca ia ao mesmo lugar, não usava duas vezes a mesma roupa, nunca acordava na mesma hora. Ela era o inverso de seu mundo. Quanto mais andava com Anitora, mas odiava o que tinha. Odiou tudo silenciosamente até que não havia mais nada para odiar. Beth recortava anúncios de imóveis. O gato andava perdido pelos telhados. As crianças encenavam caminhões carregando sofás.

Com Anitora, a vida era fascinante, nova. Trouxe-a para si. Acontece que Anitora nunca sentia o mesmo interesse, não dormia duas vezes na mesma cama, não amava duas vezes a mesma pessoa. Ela era só um dia. Com o tempo, Anitora era um fantasma que o assombrava com desprezo e ausência, enquanto ele, sentado, olhava um vazio que recortava revistas de moda, um vazio que ronronava no sofá e um vazio que encenava histórias com sua imaginação.

6 comentários:

Liliane disse...

Adorei a gradação, se é que posso chamar assim, nem sei se posso, enfim, mesmo que n seja gradação, o que gostei foi da visão de tudo pelas mudanças de Beth, do gato e das crianças, não tão estáticos afinal. Muito bom.

Andrea disse...

Que bom que ao chegar em casa ainda encontre poesia. Lindo, lindo texto! Depois falo pessoalmente minhas impressões.
=****

Medievas disse...

Putaquepariu.
Só tenho isso a dizer.

Malthus disse...

Po, velho, muito bom o texto, cara. Anitora, anagrama de "a rotina", eu imagino, é phoda mesmo. É isso aí, monstro.

Anônimo disse...

Meirmaum, tá ficando profissional na escrita. Já vi jogo semelhante de narrativa, mas o fato do texto ficar bem amarrado e o tempo na história se encerrar num ciclo mostra que isso merece uma comemoração. Abramos, então, um vinho para os bons textos e as boas histórias.

Abs.

Tempo Temporã disse...

A rotina às vezes pode parecer tão fatídica. Mas nada sem ela para construir o não-vazio de existir.

ConsuL